Filosofias de Muro
Era noite e eu já estava com o copo cheio de vinho Padre Cícero, Pierre assava carne e cebola na grelha, no nosso radinho tocava Black Hole Sun da banda Soundgarden, já era umas onze da noite e a rua esquisita só abrigava uma galera que vendia droga ali em frente da casa, a gente conseguia ver por ter o privilégio de um muro enorme em um prédio e em meio a essa galera tinha um cara que mexia incessantemente no cabelo, era uma jogada de cabelo engraçada e o mais engraçado era quando Pierre olhava pra mim e fazia a imitação passando a mão e jogando o cabelo, completando com caras e bocas, eu ria até minha barriga achar que tava treinando abdominal.
Já meio grogue eu começava puxar os assuntos que só a gente conseguia conversar tão bem, coisa que não acontecia com mais ninguém, mesmo que um de nós tentasse dialogar sobre essas coisas com outras pessoas nunca era aquela energia de identificação e acolhimento.
Pierre se cobrindo na fumaça da grelha me disparou:
– As grandes ideias nunca foram inventadas em momentos de sobriedade, já percebeu? Eu acho que o ser humano só chegou onde chegou pelos picos de loucura e por sair da realidade por alguns instantes.
Tomo um gole do vinho e respondo:
– Mas sabe o que é? A gente não vive a realidade na sobriedade, a gente não se dá conta que isso aqui é automático demais, quando eu bebo por exemplo, sinto as coisas com mais intensidade, se eu lembrar de algumas dores elas vão doer mais, se algo engraçado acontece nesse meio tempo eu rio desesperadamente, é tudo na pura natureza tá ligado?
– pensando por esse lado faz mais sentido, a gente relaxa por completo e se concentra no sentir independentemente disso ser bom ou ruim.
– exato cara, no dia a dia a gente fica meio naquela de ficar freando frases e comportamentos, a gente não pode ser a gente e agir como pede os instintos, socialmente a gente tem que manter essa linha comportada e acho válido, já pensou a gente desopilar? Há quem desopile e faça o que dá na telha mas esses você sabe onde estão: na cadeia, e por quê? Porquê não souberam frear comportamentos e agora estão enjaulados pra aprender na marra como usar os freios.
Pierre espetava as carnes e as cebolas e fui entregar o prato a ele, enquanto ele colocava o conteúdo no prato e repartia por igual olhou pra mim e falou:
– então você concorda em parte que essas regras sociais são boas né? Já imaginou se a Sociedade Alternativa de Raul Seixas fosse a lei? O que já é ruim seria ainda pior, mesmo que eu goste de Raul, nessa parte aí ele pecou, o ser humano necessita de regras.
– tu sabe que eu sou doida pra tatuar o yin e yang no braço exatamente por crer que tudo no universo precisa desse equilíbrio! As regras são boas e também são ruins, nada é absolutamente bom nem absolutamente mal, quanto a música de Raul as vezes desconfio que ele se referia a uma sociedade tão civilizada que não seria necessário regrar o que não se pode fazer pois nossa consciência já estaria elevada a tal ponto que nem cogitaríamos fazer algo ruim mesmo que fosse permitido por lei.
Com um pedaço de carne na boca Pierre me responde:
– se o agora fosse anos atrás, tenho quase certeza que a gente vagaria por Atenas com essas ideias, o que nos resta agora é externar isso aqui mesmo nesse muro. Ele sorri e eu retribuo o sorriso.
– com certeza sim, só não sei se eu iria encarnar homem pra poder filosofar por lá ou se revolucionaria e pediria a inserção de mulheres no meio.
– eu acredito mais na segunda opção, só não sei se teria um bom desfecho. Vamo subir na laje?
– sim (respondo com um sorriso de canto á canto) e sem querer ainda derrubo um pouco de vinho no chão.
A laje na verdade não era uma “laje” de fato, era só o teto do banheiro, mas na parede já tinha pregada a metade de uma escada de ferro enferrujada que a gente primeiro tinha que subir no lavador de roupa que ficava ao lado dela e só depois conseguia alcançá-la .
A gente fez esse ritual e enfim ele sentou enquanto eu me deitei e coloquei a cabeça no colo dele, olhando as estrelas, cada um pensando na imensidão do que é ser algo ou alguém, trancados no próprio universo que as vezes permitíamos compartilhar um com o outro, cheios de indagações que não sabíamos se nos levariam a algum lugar ou se a grande verdade é que não havia lugar nenhum pra chegar.