QUANDO TIA FLORA CHEGAVA

Da janela do sótão eu espiava a charrete cruzando a porteira,depois desfilando solene à minha frente.
Uma cerca de ripas dividia os territórios da nossa casa e da casa de tia Flora, onde também uma janela de sótão me sondava.
Titia adentrava ,conduzindo a charrete carregada das bilhas de leite, vazias agora, depois das entregas que fazia no centro da cidade.
Vendia de tudo !
Leite, e seus derivados, alfaces,laranjas,ameixas e eventualmente alguns pães caseiros.
Na passagem ela me acenava com seu perene gosto pela vida.O terreiro era imenso e ao fundo, dois pés de chorão escorriam-se em sombras sobre o estábulo.
Lile, minha prima, corria ajudar a recolher os agradinhos que titia trazia da cidade.
Vez e outra, gritava para mim:
- Ôpa ! Hoje vamos ter bolinhos, "Dona Flora " trouxe carne moída !
Eu, ria apenas, disfarçando uma discreção que nunca tive. N o fundo sabia que a manhã seria de comilança.
Recusava o almoço de casa e ouvia as confidências de vó Maria à minha mãe, sobre a possibilidade de eu não estar bem de saúde.
-Não é normal um piá nessa idade, sem querer comer , dizia vovó.Os meninos do meu tempo comiam uma arroba e ainda pediam mais.
Meu Deus ! Ele tá doentinho, coitado.
Confesso que fazia uma chantagenzinha, uma carinha mais feia que a original, para reforçar o diagnóstico de ambas.
Em seguida, dizendo estar saindo para caçar borboletas, cruzava a cerquinha de ripas e adentrava à cozinha da casa vizinha.
Os bolinhos estavam em andamento.Tia Flora já havia preparado a pasta principal e Lile, envolta num exagero de farinha de trigo, ia moldando um a um, colocando-os suavemente sobre um pano de prato.
O pequeno tacho com banha de porco,no ponto, e titia prestes a frita-los.
Lile pedia minha ajuda (depois de lavar bem "essas mão" rsrs...) Aí, eu punha a mão na massa, literalmente, na "massacrante" tarefa de ajudar a prima.
As remessas eram enviadas até o fogão e a cozinha incensava-se ao cheiro mais provocante que já senti em toda a minha vida.
Na hora do almoço eu fazia um luxinho,mas aos poucos , Lile e eu, promovíamos o espetáculo dantesco do empanturramento.
As vezes tento fazer os bolinhos de tia Flora.
Capricho ! Mas tudo fica num genérico, não se iguala àqueles bolinhos que levavam batata amassada, farinha de trigo ,carne moída e muito cheirinho verde.
Depois de fritos, tinham maciez e crocância ao mesmo tempo e não impregnavam-se de gordura.
Hoje, nesse domingo azul, enquanto o pessoal aqui de casa dormia ainda, eu pilotava o fogão preparando uma carne de panela.
Abri a geladeira e deparei-me com um pote de carne moída e esse encontro arremessou-me aos sóis de meus melhores dias.
Não ! Não ousarei por hoje a preparar os bolinhos, ainda que lutando para resistir à tentação.
Enquanto a panela chiava e o cheiro característico da
carne cozida e seus temperos,inundava a cozinha,saí para espiar a leveza deste dia azul borrado levemente de algumas poucas núvens brancas.
Um gavião guinchava no alto e uma borboleta amarela visitava as açucenas brancas ao lado do portão.
Tudo tão eu ! Quando piá do interior.
Abri os braços e abraçei-me em divagações.
Retornando à cozinha...
Preparei arroz branco - cremoso -legumes e saladas.
A carne de panela, modéstia à parte, foi muito elogiada.
A minha porção, fêz-se acompanhada de uma skol estupidamente gelada.
A cara metade recusou a loira gelada e partiu para um suquinho básico.
-Vou comungar hoje à tarde e quando faço isso,não bebo nada que contenha álcool.
Tudo muito calmo, sereno, tranquilo...O ruído dos talheres remetia-me àquela mesa repleta de bolinhos,Lile e eu, enfarinhados.
Doido para escrever alguma coisa, perdoem-me tê-los alugado com mais uma de minhas bobas lembranças.
Bom domingo a todos.

Em tempo: Agora que o gavião calou-se, optei por ouvir "Simply Red".Afinal, ninguém é de ferro,né?

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