O PRESSÁGIO DA DINDINHA

O PRESSÁGIO DA DINDINHA

A saudade da infância traz-me com frequência à memória cenas vividas no seio da família numerosa. Éramos doze irmãos vivos. Sete rapazes e cinco mulheres. Quando eu nasci, os irmãos mais velhos já ombreavam com meus pais na labuta diária, de enxada, foice ou machado em punho, as três únicas ferramentas da lavoura de então. Depois que o caçulinha morreu, meu irmão gêmeo e eu, recuperamos, como se dizia, o colo da mamãe e os afagos das manas e também dos irmãos.

Meus pais eram lavradores, e morávamos no sertão a meio morro não muito distante da capelinha local, aonde íamos domingueiramente para as rezas.

Ao redor do fogão à lenha nas noites frias de inverno ou à boca da fornalha, sob o tacho onde se cozinhava a comida para os porcos de engorda, contavam-se ‘causos’ e mais ‘causos’ de fantasmas e aparições nunca vistas, apenas ouvidas pelo contador.

Também casos verdadeiros, com alguém da família ou conhecidos, eram contados frequentemente à mesa ou nas horas de descanso. Assim, fiquei sabendo que meu pai e dois dos meus irmãos tinham sido picados por jararaca e que foram salvos pela aplicação de um contraveneno, um líquido escuro que minha mãe guardava com todo cuidado num litro de vidro branco no alto de uma prateleira de seu quarto de dormir. Não fiquei sabendo se o tal líquido era ingerido ou apenas aplicado sobre o ferimento.

Mas o caso seguinte não precisei que alguém me contasse. Eu mesmo fui testemunha. Antes, porém, de começá-lo, convém esclarecer que, entre muitos vícios de linguagem, o rotacismo – troca do ‘l’ pelo ‘r’ anteconsonantal – era de uso geral e quase consagrado no falar roceiro local, nada afeito às normas da gramática. Mesmo assim e por isso mesmo, eu vou tentar reproduzi-los aqui.

Fazia muito tempo, nem me lembro desde quando, minha avó materna, a quem nós chamávamos carinhosamente de Dindinha, morava conosco. Nossa casa, embora pequena, de apenas cinquenta metros quadrados, ainda teve espaço para acolhê-la. A pobrezinha andava toda arcada, não pela idade, mas devido ao reumatismo que lhe atacou a coluna.

Nesse dia, do acontecido, ao sairmos para a roça na companhia de minha mãe, a Dindinha estava à espera no rancho das ferramentas e parecia apreensiva.

— Benta, diz lá pro Seu Antonho tomá muito cuidado, que tá pra cuntecê arguma coisa ruim com ele, que eu não sei bem o que é, mas eu vô ficá rezando pra desfazê o male que tá arranjado pra ele.

A Dindinha, não sei por qual motivo, tratava meu pai, genro seu, com todo respeito. Tanto respeito, que evitava estar na presença dele, nunca lhe dirigia a palavra e quando se referia a ele, tratava-o por ‘Seu Antonho’. A pobre mulher parecia morrer de vergonha quando meu pai a via fumando e tratava de esconder o cigarro, mesmo sabendo que era ele quem comprava o fumo de corda com que ambos faziam seus palheiros. Naquele tempo, meu pai também fumava. Anos depois, ele dominou o vício.

— Tá certo, mamãe, eu vô avisá pra ele se cuidá — disse minha mãe, não muito crente na inusitada premonição da Dindinha.

— Ah, se não cuntecê o male pra ele, intão me traz o male desfeito.

— Tá bom. Se eu eu ficá sabendo... Trago sim. Mas pra que é que a mamãe quer?

— Despois eu te conto — respondeu a Dindinha num sorriso enigmático.

Quinze a vinte minutos depois, nós, crianças ainda, capinávamos uma roça de feijão, supervisionados por minha mãe, que ia ensinando o manejo da enxada e o reconhecimento das plantas. “Trabalho de criança é pouco, mas quem perde é louco”, dizia ela de vez em quando.

Bem perto dali, meu pai e alguns dos meus irmãos mais velhos roçavam um capoeirão para o próximo plantio. De repente, minha mãe viu que meu pai procurava algo entre roçado a seu redor e gritou:

— O que foi, Antônio? O que é que tás procurando? O que foi que perdeste?

Daí, nós olhamos também.

— É um jaracuçu — explicou meu pai. — Eu atorei o marvado com a foice, mas não sei aonde foi parar a cabeça dele.

Era costume, lá em casa e pela vizinhança, chamar de almoço para o café das dez – que geralmente era servido na roça –, janta para a refeição do meio-dia, merenda para o café da tarde – também servido na roça – e ceia para a da noite.

Algum tempo depois, uma das minhas irmãs mais velhas chegou de casa trazendo o almoço. Imediatamente cada um lá do roçado largou sua foice e rumou para o local onde minha mãe já ajeitava a ‘mesa’ do café na roça, desentrochando a comida, e nós, os pequenos, já tínhamos garantido nossos lugares mais próximos dela, que era quem servia a todos.

Sentados em volta da cesta de comida, saboreávamos nossos bocados com avidez, regados ao café com leite já meio morno, pois naquele tempo nem se sonhava com garrafa térmica, muito menos com isopor com que hoje se conserva o calor da comida por longo tempo. De repente, minha irmã, pouco mais velha que eu, que sentava em posição oposta à de meu pai, exclamou, fazendo cara de nojo:

— Ui, pai, o que é isso que o pai tem no chapéu!?

Todos olhamos. Era a coisa mais feia de se ver. Parecia um pedaço de salame grudado na frente do chapéu de palha, do qual tinha vertido um sangue negro e escorrido pela aba do chapéu.

Meu pai tirou o chapéu da cabeça e olhou.

— Pois não é que é a cabeça do jaracuçu que eu atorei com a foice! — exclamou ele admirado e, sentindo um arrepio, jogou o chapéu para longe.

Foi a primeira e única vez que eu vi meu pai voltar ao trabalho e depois para casa sem o seu, até ali, inseparável chapéu de palha, já enegrecido pelo uso prolongado e os repetidos suores, o qual ainda hoje eu reconheceria entre centenas.

— Ui, que perigo, homem de Deus! — minha mãe exclamou, certamente pensando na previsão da Dindinha. — Já pensou, se ela tivesse te acertado o rosto! Escapaste por pouco!

De noitinha, ao ver-nos chegando da roça, a Dindinha foi ao nosso encontro com cara de interrogação.

— Olha, mamãe, o mal foi desfeito. Toma aí o que a senhora me pediu — disse minha mãe, entregando a ela o chapéu de meu pai, com a cabeça da cobra ainda agarrada nele, enrolado numa folha de caité.

O que a Dindinha fez com a cabeça do jaracuçu eu não fiquei sabendo.

PACorrêa
Enviado por PACorrêa em 25/10/2020
Reeditado em 25/10/2020
Código do texto: T7096062
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