É preciso conversar com os falecidos.

Ao longo da vida tive sérios problemas com o luto. A própria palavra me provocava verdadeiro mal estar.

Eu me lembro, em 1970, quando do falecimento da mãe do meu pai, o mesmo passou tempos com um rosto tremendamente amargurado, sombrio e eu tinha que desligar a televisão quando da apresentação de alguma música. A dor estava na ordem do dia, supervalorizada a cada segundo. A herança portuguesa do meu pai não lhe permitia compreender que a Inquisição tinha acabado e que o dorismo poderia ser descartado.

E foram muitas as partidas. De 2002 em diante, praticamente uma pessoa querida por ano.

Fui aprendendo a olhar para a situação com mais carinho e muito mais humildade.

Humildade em reconhecer que o tempo passou, que somos de fato pequenos e muito, muito simples. Que, querendo ou não, a vida é eterna e que pessoas que vão simplesmente atravessam o rio e ficam do outro lado por um tempo fazendo novas experiências, buscando outros saberes, se aperfeiçoando para uma futura nova empreitada.

Passei a entender e a admirar essa situação: novos aprendizados sem o peso do corpo, sem dores e dissabores, compreendendo a possibilidade de se construir uma vida plena distante daquele ranço, das disputas e maldades do cotidiano cá embaixo.

Parabenizo de coração todos aqueles que foram realmente mestres, mesmo sem saber. Sempre ensinaram. E sou infinitamente grata a todos eles. Gratidão pelos que me fizeram entender alguma coisa da existência, muitíssimo obrigada a todos aqueles que me ensinaram a sorrir nos momentos difíceis, que me ensinaram a honestidade, dar valor ao estudo, ao trabalho, à partilha. Valor ao respeitar os outros, sobretudo os mais solitários e humildes. Gratidão a todos aqueles que me ensinaram a cuidar de mim, de corpo e alma e dos meus semelhantes.

Dia de finados é dia de agradecimento sincero, profundo, com o coração cheio de paz como retribuição.

E digo mais: um dia de alegria e jamais de choro. Alegria por todos eles terem feito parte da construção do nosso caráter, da nossa história e de tudo que temos materialmente falando, pois lutaram muito , bravamente, para que chegássemos a esse grau de conforto que jamais sonharam. Como é possível lembrar das fragilidades econômicas e da vontade que os nossos antepassados tiveram de comer um simples doce que hoje até não damos o menor valor e significado!!!!

Tenho gravadas todas as datas das partidas dos meus queridos cá no computador e, no final, um texto de Thích Nhat Hanh, monge budista, pacifista, escritor e poeta Vietnamita ativista dos direitos humanos.

Desde antes dos tempos eu sou livre.

Este corpo não sou eu.

Eu não sou limitado por este órgão.

Eu sou a vida sem limites.

Eu nunca nasci,

e eu nunca morri.

Olhe para o mar e o céu cheio de estrelas,

manifestações de minha mente, verdade maravilhosa.

Desde antes dos tempos, eu sou livre.

O nascimento e a morte são apenas portas pelas quais passamos, limiares sagrados no nosso caminho.

Nascimento e morte são um jogo de esconde-esconde.

Então ria comigo,

segure a minha mão,

vamos dizer adeus,

despedir-se, reunir-se novamente em breve.

Nós nos encontramos hoje.

Nós vamos nos encontrar novamente amanhã.

Nós vamos nos encontrar na fonte a cada momento.

Nós nos encontramos uns aos outros em todas as formas de vida.

E é de Clarice Lispector esta preciosidade que também destaco no meu caderno de memórias:

Não te amo mais

Estarei mentindo dizendo que

Ainda te quero como sempre quis

Tenho certeza que

Nada foi em vão

Sinto dentro de mim que

Você não significa nada

Não poderia dizer mais que

Alimento um grande amor

Sinto cada vez mais que

Já te esqueci!

E jamais usarei a frase

Eu te amo!

Sinto, mas tenho que dizer a verdade

É tarde demais...

(Leia agora este texto de baixo para cima).

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 02/11/2020
Reeditado em 02/11/2020
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