RELATOS DE INFÂNCIA
Por Sandra Fayad
Até os doze anos de idade, minha vida esteve intimamente ligada ao campo. Minhas lembranças da última casa da fazenda estão sempre associadas à fartura, aos riscos na convivência com animais silvestres e aos acidentes domésticos. Lá não faltava comida. Havia sempre carne de aves e peixe de água doce, grãos, ovos, doces, frutas, legumes e verduras, leite e derivados, pães, bolos, biscoitos. Tudo era caseiro e preparado pela mãe, tia, avó. Elas estavam quase sempre na cozinha. Inventavam e trocavam receitas. Às vezes uma fazia doce de goiaba, a outra de mamão. Depois dividiam entre as casas para que tivéssemos variedade. Matavam galinhas, destroncando-lhes o pescoço ou cortando-lhes a goela. Depois as mergulhavam em água fervente, depenavam e esquartejavam, para o cozimento. Eu sentia repulsa ao cheiro das penas de galinha escaldada e, se me lembrasse da cena, não conseguia comê-la. Quando matavam porco ou vaca, faziam um mutirão, convocando as mulheres da redondeza para ajudar, porque dava muito trabalho preparar tudo no mesmo dia, já que não havia geladeira. Para conservá-las, guardavam as carnes dentro de latões mergulhadas em gordura e enchiam as tripas com carne moída manualmente - virava lingüiça. Os miúdos cozinhavam com feijão. Fritavam a pele - virava torresmo. Misturavam as sobras de gordura com soda cáustica em um tacho grande – virava sabão. Na época de colheita das safras de arroz, feijão, milho, mandioca e algodão também faziam mutirão para preparar farinha, fubá, tecidos e ensacamento para o ano todo. Os homens colhiam as produções e colocavam tudo no paiol ou na casa do monjolo. Vinham então as mulheres e preparavam desde a seleção até o produto final. Às vezes o trabalho demorava uma semana e era bom ver aquele movimento na fazenda. Enquanto trabalhavam, cantavam, contavam causos e faziam miniaturas e bonecos com os produtos para nos agradar. Havia muitas cobras na fazenda. Para evitar que se aproximassem da casa, papai procurava manter limpo o terreno em volta, mas mesmo assim era comum vê-las passeando pelo quintal e tínhamos que estar sempre atentos para não pisar em nenhuma quando andássemos pelos pomares e pastos um pouco mais distantes. Papai era caçador de cobras e sempre trazia várias espécies delas em sacos amarrados pela boca - e que ficavam pulando no quintal - para encaminhar ao Instituto Butatã, através do meu tio, que passava de caminhonete em direção à cidade. Uma manhã, após o café, mamãe lembrou-me que era hora de arrumar as camas. Eu gostava daquela tarefa, porque sempre retirava os lençóis e enfiava as mãos pela abertura do colchão de palhas para remexê-las. Isto fazia com os colchões para que ficassem bem altos, permitindo que mergulhássemos na cama quando fôssemos dormir ou mesmo para brincar sozinha de mergulho seco. Naquele dia, levei um susto enorme. Ao levantar justamente o lençol da minha cama e esticar a mão em direção à abertura, fiquei paralisada. Havia duas cabeças de cobra enroladas na “boca” do colchão. Mas na verdade, tratava-se de apenas uma cobra de duas cabeças. Ela só se mexeu quando comecei a gritar desesperada, acordando-a. Mamãe quando compreendeu o motivo dos meus gritos, pegou uma vassoura e matou-a ali mesmo dentro do quarto. Outra vez fomos, meu irmão e eu, ao pomar de frutas e legumes rasteiros, que ficava a uns quinhentos metros da casa. O local era cercado com quatro ou cinco fios de arame farpado, para evitar que animais pisoteassem as ramas de melancias, melões, maxixes e abóboras. Quando estávamos chegando à entrada do cercado, vimos passar na nossa frente nada mais nada menos que uma jibóia. Com medo de sermos atacados por ela na saída, ficamos horas dentro do cercado chorando e rezando, até que papai apareceu para nos levar de volta à casa. Arranhões, quedas de árvores e de lombo de animais ainda não amansados , topadas em pedras, picadas de mosquitos, piolhos e carrapatos eram comuns. Mamãe ficava sempre apreensiva, se não estivéssemos ao alcance dos seus olhos. Sabia que se algo grave nos acontecesse poderíamos morrer antes que o socorro chegasse da cidade. Foi assim com a vovó, que morreu a mingua, após uma picada de cobra cascavel. O mais gratificante desse tempo eram as cavalgadas pelos pastos na sela de um cavalo baio amansado, que papai reservou somente para nós, crianças. Ali, eu me sentia forte, poderosa, superior, em perfeita sintonia com a postura elegante do Baião...e livre.
Por Sandra Fayad
Até os doze anos de idade, minha vida esteve intimamente ligada ao campo. Minhas lembranças da última casa da fazenda estão sempre associadas à fartura, aos riscos na convivência com animais silvestres e aos acidentes domésticos. Lá não faltava comida. Havia sempre carne de aves e peixe de água doce, grãos, ovos, doces, frutas, legumes e verduras, leite e derivados, pães, bolos, biscoitos. Tudo era caseiro e preparado pela mãe, tia, avó. Elas estavam quase sempre na cozinha. Inventavam e trocavam receitas. Às vezes uma fazia doce de goiaba, a outra de mamão. Depois dividiam entre as casas para que tivéssemos variedade. Matavam galinhas, destroncando-lhes o pescoço ou cortando-lhes a goela. Depois as mergulhavam em água fervente, depenavam e esquartejavam, para o cozimento. Eu sentia repulsa ao cheiro das penas de galinha escaldada e, se me lembrasse da cena, não conseguia comê-la. Quando matavam porco ou vaca, faziam um mutirão, convocando as mulheres da redondeza para ajudar, porque dava muito trabalho preparar tudo no mesmo dia, já que não havia geladeira. Para conservá-las, guardavam as carnes dentro de latões mergulhadas em gordura e enchiam as tripas com carne moída manualmente - virava lingüiça. Os miúdos cozinhavam com feijão. Fritavam a pele - virava torresmo. Misturavam as sobras de gordura com soda cáustica em um tacho grande – virava sabão. Na época de colheita das safras de arroz, feijão, milho, mandioca e algodão também faziam mutirão para preparar farinha, fubá, tecidos e ensacamento para o ano todo. Os homens colhiam as produções e colocavam tudo no paiol ou na casa do monjolo. Vinham então as mulheres e preparavam desde a seleção até o produto final. Às vezes o trabalho demorava uma semana e era bom ver aquele movimento na fazenda. Enquanto trabalhavam, cantavam, contavam causos e faziam miniaturas e bonecos com os produtos para nos agradar. Havia muitas cobras na fazenda. Para evitar que se aproximassem da casa, papai procurava manter limpo o terreno em volta, mas mesmo assim era comum vê-las passeando pelo quintal e tínhamos que estar sempre atentos para não pisar em nenhuma quando andássemos pelos pomares e pastos um pouco mais distantes. Papai era caçador de cobras e sempre trazia várias espécies delas em sacos amarrados pela boca - e que ficavam pulando no quintal - para encaminhar ao Instituto Butatã, através do meu tio, que passava de caminhonete em direção à cidade. Uma manhã, após o café, mamãe lembrou-me que era hora de arrumar as camas. Eu gostava daquela tarefa, porque sempre retirava os lençóis e enfiava as mãos pela abertura do colchão de palhas para remexê-las. Isto fazia com os colchões para que ficassem bem altos, permitindo que mergulhássemos na cama quando fôssemos dormir ou mesmo para brincar sozinha de mergulho seco. Naquele dia, levei um susto enorme. Ao levantar justamente o lençol da minha cama e esticar a mão em direção à abertura, fiquei paralisada. Havia duas cabeças de cobra enroladas na “boca” do colchão. Mas na verdade, tratava-se de apenas uma cobra de duas cabeças. Ela só se mexeu quando comecei a gritar desesperada, acordando-a. Mamãe quando compreendeu o motivo dos meus gritos, pegou uma vassoura e matou-a ali mesmo dentro do quarto. Outra vez fomos, meu irmão e eu, ao pomar de frutas e legumes rasteiros, que ficava a uns quinhentos metros da casa. O local era cercado com quatro ou cinco fios de arame farpado, para evitar que animais pisoteassem as ramas de melancias, melões, maxixes e abóboras. Quando estávamos chegando à entrada do cercado, vimos passar na nossa frente nada mais nada menos que uma jibóia. Com medo de sermos atacados por ela na saída, ficamos horas dentro do cercado chorando e rezando, até que papai apareceu para nos levar de volta à casa. Arranhões, quedas de árvores e de lombo de animais ainda não amansados , topadas em pedras, picadas de mosquitos, piolhos e carrapatos eram comuns. Mamãe ficava sempre apreensiva, se não estivéssemos ao alcance dos seus olhos. Sabia que se algo grave nos acontecesse poderíamos morrer antes que o socorro chegasse da cidade. Foi assim com a vovó, que morreu a mingua, após uma picada de cobra cascavel. O mais gratificante desse tempo eram as cavalgadas pelos pastos na sela de um cavalo baio amansado, que papai reservou somente para nós, crianças. Ali, eu me sentia forte, poderosa, superior, em perfeita sintonia com a postura elegante do Baião...e livre.