MINHA INFÂNCIA – NOSSA TAPERA
Por Sandra Fayad
Por Sandra Fayad
Na cidade, há 50 km da fazenda, a iluminação das casas e das ruas era tão fraquinha que à noite não se lia. Só podíamos ouvir rádio e conversar, pois também não tínhamos TV. A casa antiga, construída pelo meu avô paterno, era a prova de que “em casa de ferreiro, o espeto é de pau” e que “santo de casa não faz milagres”. Mamãe a chamava de “tapera”. A falta de manutenção no telhado fazia com que acordássemos às vezes de madrugada, molhados da água da chuva para arrastar as camas para um lugar mais seco. O piso era de tábuas muito velhas, que se quebravam com um pouco mais de peso e, se pulássemos sobre ele, poderíamos ficar com as pernas presas entre as lascas que se partiam e afundavam pelo porão adentro. Este era um espaço oco de mais ou menos um metro de altura, sob o piso da casa inteira. Lá era escuro e de terra batida, onde guardavam ferramentas, sacaria, sementes, etc. Mesmo que limpassem de vez em quando, constituía-se em território perigoso, porque quase sempre estava cheio de teias de aranha, ratos, baratas, escorpiões. Até cobras apareciam de vez em quando.
Só entrávamos lá para esconder alguma coisa ou para nos escondermos, quando estavam nos procurando para bater por causa de algum erro imperdoável. Aliás, quase todos os erros eram imperdoáveis. Adulto e criança não se misturavam, portanto – esqueça! – não havia diálogo. Monólogos existiam sempre e eram padronizados: sai da sala, menina! aqui não é lugar pra criança! isto é assunto de adulto! vai pro quarto! vai tomar banho! vai fazer os deveres! vai comprar...(isto ou aquilo) e não demora! presta atenção no troco! vem comer! vai dormir! fala bom dia (quando chegava visita)! reza! pede licença! Obedece! sou eu quem manda! cala a boca!, vou te bater! você vai apanhar! vou te dar uma surra que você não vai esquecer! Eu levei uma dessas de um tio, que resolveu me mostrar quem é que mandava em mim. Foram duas semanas de salmouras e curativos.
Mas justiça seja feita: os adultos da cidade protegiam qualquer criança de animais ferozes, correntezas de rios, tempestades e pessoas estranhas, como ao seu próprio filho. Mas se o perigo iminente tivesse sido provocado por traquinagem, aplicavam logo um corretivo, pois o esforço lhes dava esse direito, e os pais ainda aplaudiam e agradeciam.
Um dia, quando não dava mais para continuar na “tapera”, papai acabou de desmanchá-la, pois boa parte já havia mesmo caído. Ergueu provisoriamente de um lado do terreno, dois cômodos, que chamou de cozinha e despensa com uma caixa d’água anexa, e do outro lado mais dois outros cômodos, que chamou de quartos, onde dormíamos todos amontoados. Limpou a área onde estava a casa antiga e fez o alicerce para a nova, deixando mamãe bem animada. Mas o sonho dela ficou nisso por falta de dinheiro.
Como não havia esgoto sanitário, muito menos banheiro completo, as necessidades fisiológicas eram solucionadas em uma casinha nos fundos do quintal, em torno de um buraco de uns três metros de profundidade, coberto com um piso de tábua ou cimento e uma abertura no meio. Como era fedido, só ficávamos lá o tempo mínimo necessário. Se alguém quisesse fazer desaparecer algum objeto, jogava-o lá dentro. Sob a caixa d’água, havia um quartinho de mais ou menos 1,5 m x 1,5 m., onde era dependurada uma lata de 20 litros, aberta na parte de cima, toda furadinha embaixo e uma torneira lateral. Era o nosso chuveiro. Quando estava frio, a mamãe esquentava água no fogão e despejava lá. O banho tinha que ser rápido, senão a água acabava, deixando-nos ensaboados. Depois, houve uma melhora significativa, porque papai colocou serpentina no fogão e encanamento até a caixa d’água, de onde saía a água para dentro do chuveirão, fazendo com que os banhos ficassem mais confortáveis. E finalmente ganhamos um vaso sanitário ao lado do chuveirão.
Em toda a casa só existiam mais duas torneiras: a do tanque, do lado externo, onde se lavava roupas e escovávamos os dentes, e a da cozinha.
Dormíamos com as portas das casas trameladas, mais para evitar a entrada de animais do que por medo de assaltos e sequestros. Os assassinatos eram planejados e até previstos, pois só aconteciam quando a causa fosse disputa pelo poder político, vingança ou traição. Suicídio, só em caso de amor não correspondido ou de forte desmoralização pública.
As moças que “se perdiam”, eram casadas na delegacia, na igreja e no cartório. Eu me lembro de um desses casamentos. Os noivos cabisbaixos, vestidos de vergonha, o delegado, as testemunhas e os pais da noiva bem atentos ao rapaz para que não fugisse ou faltasse à responsabilidade. Afinal, ele “fez mal” à moça.
Só entrávamos lá para esconder alguma coisa ou para nos escondermos, quando estavam nos procurando para bater por causa de algum erro imperdoável. Aliás, quase todos os erros eram imperdoáveis. Adulto e criança não se misturavam, portanto – esqueça! – não havia diálogo. Monólogos existiam sempre e eram padronizados: sai da sala, menina! aqui não é lugar pra criança! isto é assunto de adulto! vai pro quarto! vai tomar banho! vai fazer os deveres! vai comprar...(isto ou aquilo) e não demora! presta atenção no troco! vem comer! vai dormir! fala bom dia (quando chegava visita)! reza! pede licença! Obedece! sou eu quem manda! cala a boca!, vou te bater! você vai apanhar! vou te dar uma surra que você não vai esquecer! Eu levei uma dessas de um tio, que resolveu me mostrar quem é que mandava em mim. Foram duas semanas de salmouras e curativos.
Mas justiça seja feita: os adultos da cidade protegiam qualquer criança de animais ferozes, correntezas de rios, tempestades e pessoas estranhas, como ao seu próprio filho. Mas se o perigo iminente tivesse sido provocado por traquinagem, aplicavam logo um corretivo, pois o esforço lhes dava esse direito, e os pais ainda aplaudiam e agradeciam.
Um dia, quando não dava mais para continuar na “tapera”, papai acabou de desmanchá-la, pois boa parte já havia mesmo caído. Ergueu provisoriamente de um lado do terreno, dois cômodos, que chamou de cozinha e despensa com uma caixa d’água anexa, e do outro lado mais dois outros cômodos, que chamou de quartos, onde dormíamos todos amontoados. Limpou a área onde estava a casa antiga e fez o alicerce para a nova, deixando mamãe bem animada. Mas o sonho dela ficou nisso por falta de dinheiro.
Como não havia esgoto sanitário, muito menos banheiro completo, as necessidades fisiológicas eram solucionadas em uma casinha nos fundos do quintal, em torno de um buraco de uns três metros de profundidade, coberto com um piso de tábua ou cimento e uma abertura no meio. Como era fedido, só ficávamos lá o tempo mínimo necessário. Se alguém quisesse fazer desaparecer algum objeto, jogava-o lá dentro. Sob a caixa d’água, havia um quartinho de mais ou menos 1,5 m x 1,5 m., onde era dependurada uma lata de 20 litros, aberta na parte de cima, toda furadinha embaixo e uma torneira lateral. Era o nosso chuveiro. Quando estava frio, a mamãe esquentava água no fogão e despejava lá. O banho tinha que ser rápido, senão a água acabava, deixando-nos ensaboados. Depois, houve uma melhora significativa, porque papai colocou serpentina no fogão e encanamento até a caixa d’água, de onde saía a água para dentro do chuveirão, fazendo com que os banhos ficassem mais confortáveis. E finalmente ganhamos um vaso sanitário ao lado do chuveirão.
Em toda a casa só existiam mais duas torneiras: a do tanque, do lado externo, onde se lavava roupas e escovávamos os dentes, e a da cozinha.
Dormíamos com as portas das casas trameladas, mais para evitar a entrada de animais do que por medo de assaltos e sequestros. Os assassinatos eram planejados e até previstos, pois só aconteciam quando a causa fosse disputa pelo poder político, vingança ou traição. Suicídio, só em caso de amor não correspondido ou de forte desmoralização pública.
As moças que “se perdiam”, eram casadas na delegacia, na igreja e no cartório. Eu me lembro de um desses casamentos. Os noivos cabisbaixos, vestidos de vergonha, o delegado, as testemunhas e os pais da noiva bem atentos ao rapaz para que não fugisse ou faltasse à responsabilidade. Afinal, ele “fez mal” à moça.
Bsb, 29/11/2020
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