A Quase Extinção do Caliostênio

A Quase Extinção do Caliostênio

Neudson Nicasio

Todo mundo sempre tem um grande acervo de histórias de quando se era criança e das travessuras que aprontávamos. Embora me falte testemunhas e me sobre acusadores do contrário, eu era uma criança quieta e comportada, e minha ficha de bom menino estaria quase intacta, não fosse por conta de um famigerado Caliostênio. Para quem não faz idéia do que isso significa, deixe-me dizer que este substantivo nomeia uma criatura cujo potencial destrutivo poderia lhe dar o título de bomba termonuclear caseira, cuja radiação doméstica tem efeito nocivo sobre a mobília, eletrodomésticos e tudo o que puder ser quebrado, rasgado, danificado ou queimado. O Caliostênio é uma ave, uma réplica perfeita do já extinto pássaro Dodô, com uma pequena peculiaridade: eu sou a única pessoa do mundo que pode ver e interagir com ele.

Eu tinha seis anos quando vi o Caliostênio pela primeira vez e, na falta de conhecer as devidas terminologias, chamava-o de “galinha gorda”. Nossa primeira conversa na verdade foi uma troca de favores, onde ele havia me ajudado a descer do berço sob a condição de que eu pegasse algo em cima da mesa da cozinha. Foi nessa ocasião que ele ganhou o incrível quebra-cabeça feito de louça de um prato (que já estava na minha família há três gerações), enquanto eu ganhei minhas primeiras palmadas no bumbum.

Os anos seguintes da minha infância foram marcados por uma grande amizade com o Caliostênio, que não media esforços para me colocar em mais confusões. Toalha de mesa incendiada numa brincadeira de bombeiro, porta da geladeira colada na tentativa de concertar, cabeça raspada com um barbeador (na verdade, o Caliostênio só começou o corte, mas acabamos sendo pegos em flagrante e meu pai teve de terminar o serviço). Entretanto, as coisas começaram a se complicar quando, dada as recorrências e a idéia de sempre culpar o Caliostênio – nome que dei a ele no meu oitavo ano de vida, porque já estávamos muito íntimos e ele não gostava de ser chamado de “galinha-gorda” – por todo o caos que acontecia, meus pais decidiram me levar a psicóloga. Durante a conversa com ela, o Caliostênio não apareceu. Reencontrei-o depois, dizendo que havia ficado tímido por ela ser muito bonita e ri dele, mas também concordei.

Com o passar do tempo, decidi que arranjaria menos confusão se começasse a não colocar mais o Caliostênio em cena. Era o tempo em que os primeiros traços do discernimento humano haviam se iluminado em minha mente, e que depois de uma conversa séria, o Caliostênio prometera se comportar e ser mais cuidadoso. Nos tempos de escola que se seguiram, nossa relação ficou de idas e vindas. As vezes os velhos tempos voltavam e a gente aprontava legal (e claro, as broncas só sobravam para mim), noutras vezes, ele desaparecia e eu nem sabia que ele existia. Em algum lugar dentro de mim, eu gostava daquilo, porque era como se, depois de tanto tempo, eu finalmente fosse alguém normal, que tinha uma vida normal que poderia ser influenciada até pelo movimento dos astros no dia que eu nasci, mas nunca por uma “galinha-gorda”. Era ótima aquela sensação, mas também sentia que eu sempre seria o cara esquisito do Caliostênio.

Depois que entrei na faculdade, o Caliostênio praticamente desapareceu, com a exceção de alguns momentos em que eu o encontrava em um canto, quieto, como se estivesse doente. Depois sumia. Nesse ponto não preciso nem dizer que já não tinha mais tantas confusões na minha vida e que toda reunião de família sempre me sobre o rótulo de “hoje ele é quieto, mas quando criança, isso aprontava”. Como a maioria das pessoas, me formei em arquitetura e ganho a vida projetando apartamentos. No tempo livre entre meu trabalho e casamento, sempre acho um tempo para continuar a ilustrar minhas histórias em quadrinhos sobre as fantásticas aventuras de um pássaro Dodô, que em muito me lembra meu velho companheiro.

Estamos em um fim de semana perfeito, onde assisto a um programa qualquer na TV. Depois de um bom tempo quieto, o Caliostênio desaparecera de vez e comecei a acreditar que ele havia enfim morrido, sob a tristeza consolada de que ele já devia estar velho demais, enquanto retorno para o que estava fazendo com um sentimento de gratidão por tê-lo conhecido. Logo vejo minha filha de seis anos pegando uma das almofadas e começa a se dirigir para o quarto dela. Pergunto o que ela está aprontando e ela inocentemente responde:

- Eu vou fazê um ninho po passarinho nascer...

No primeiro instante não dou tanta importância, mas depois, quando meu cérebro conclui todas as sinapses necessárias, vou correndo para o quarto e percebo que naquele ninho improvisado, há um ovo azul. Não sei se caliostênios machos põem ovos, muito menos se há tutorial no Google sobre como adestrá-los. A única coisa que eu tinha certeza é que era melhor rezar: novas confusões estavam por vir.