Privatização dos afetos

Quando eu era criança, convivi por anos com o carteiro da rua da casa da minha avó. Praticamente todos os dias esse mesmo trabalhador saía da sede da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos e passava por lá. Era um homem uniformizado, pardo, aparentando cerca de 35 anos, com cabelos curtos e ondulados, boca espaçosa e que andava à passos rápidos.

Porém, quando chegava naquela rua, seus passos diminuíam, porque já não entregava somente cartas e pequenas encomendas. Prova disso é o próprio fato dele ser parte da rua da minha avó, que recrio em minha memória. Tomava café na casa de uma senhora viúva, perguntava sobre a saúde do outro que sofria com gota, segurava um bebê da mãe adolescente no colo... entrava na nossa dibrinha para avacalhar!

Os cachorros, quando presos, também presenteavam suas visitas com rosnados e latidos. Não por estranhamento, mas justamente porque era familiar estranhar-se com aquele cheiro, que aparecia frequentemente, mas que não fixava residência lá.

Foi aquele carteiro que trouxe a notícia, em letras abreviadas como as palavras de meu avô dali pra frente, de que seu filho mais velho, meu tio, havia morrido em desastre de caminhão. E quem também, desta vez parado enquanto esperava a reação da minha mãe, a trouxe os uniformes com a carta de aceite para exercer função na maior empresa estatal da região.

Parecia a mim, que era criança, que aquele homem trabalhava por tantos anos no mesmo emprego porque gostava de manter contato com as pessoas que recebiam sua correspondência. A entrega das cartas e pequenas encomendas me soava mero detalhe – embora importante - de um trabalho-mor. Era como um médico, que não ministrava somente o remédio, mas investigava, conhecia, e tocava o paciente - ainda que o objetivo final, fosse receitar um amargo, como uma carta de protesto.

Intrigava-me que os pais dos meus colegas trocavam constantemente de emprego, quando não, precisavam sujar seus uniformes de trabalho recorrendo as temporadas de pesca na maré. Enquanto isso, aquele carteiro permanecia firme e inabalável em seu ofício, com o suor do seu trabalho, embora com os uniformes limpos.

O que víamos como privilégio, não imaginávamos que deveria ser o básico para todos. Eu, criança, não atribuía a sua permanência por tantos anos naquela rua às garantias das quais os carteiros conquistaram e gozavam por serem funcionários de uma empresa estatal, recrutados por concurso público.

Como ainda descrevo segundo os marcos teóricos de uma criança, nada me tira da cabeça uma ideia. Com a privatização da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, o que se quer arrancar desses homens não são os direitos ou as cartas e encomendas que entregavam. Mais e pior que isso: são as relações as quais nós, carteiros e destinatários, nos entregávamos.