O que nos contam os velórios

Uma amiga se inquieta com os longos velórios. Conta-me que houve um velório que durasse 25 horas, pois um dos filhos da falecida queria que ela fosse enterrada ao meio dia exatamente, com o sol a pino. Tendo chovido no dia, teria feito o prolongamento do velório para cumprir tal promessa feita à mãe querida. Houve um velório que se esperasse tanto que o morto teria ficado em estado lastimável, obrigando os presentes ao seu convívio insuportável. Houve ainda velórios prolongados por suspeita de que a morta estivesse viva, por ter soltado uma lágrima, mexido um dedo ou coisa que o valha. Fiquei sabendo também de inúmeros casos de enterrados vivos, casos que alimentam o imaginário daqueles que temem apressar demais o enterro de seus parentes.

O certo é que o ritual de velar os mortos foi feito em Pedro Leopoldo, durante longa data, na própria residência do morto, no tempo em que não havia velório público. A sala de estar era esvaziada para receber o esquife ladeado por velas, cadeiras, coroas e carpideiras. A rotina da casa era re-organizada para oferecer conforto aos visitantes, numa reciprocidade pela solidariedade prestada pela partilha do luto. Era comum que alguns visitantes por lá dormissem, tomando pouso enquanto esperavam pelo enterramento.

Falo de uma época em que a casa tornava-se cenário de um espetáculo de visitação pública, recebendo curiosos, parentes, amigos e mesmo desconhecidos que por lá passavam para espiar o defunto, presenciar os escândalos dos mais penalizados e povoar a sua vidinha monótona. A vida privada tornava-se pública nas ocasiões de morte. E o luto era vivido intensamente pela família, que, ao receber suas visitas, re-encenava a morte pela narrativa, numa infindável enunciação da história da morte. Contar a morte do morto ajudava a viver o luto, preparando o ambiente da casa para viver sem ele, de maneira diferente.

A construção do velório municipal moralizou o cenário da despedida do morto, retirando o corpo do palco da casa e apartando da sala de visitas a morte velada. Falo da criação de um espaço público de despedida do morto, de um ambiente diferenciado da casa, feito especialmente para essa finalidade.

Se na casa ocorria uma invasão da privacidade pela curiosidade comezinha, no velório público esta visitação pública foi então normatizada, aceita, consentida e tida por natural. Afinal, a morte numa cidade pequena é uma perda para todos, indistintamente. Quantos de nós foi a um velório somente por que conhecia “de vista” o morto ou alguns de seus parentes?

Conquanto o luto no velório tenha sido moralizado, assumindo de vez sua feição pública, o ritual de contar a morte do falecido ainda permanece intacto, um ritual de lástima narrada repetidas vezes, uma explicação ao visitante de uma realidade que se quer negar e da qual é preciso também se convencer.

Por isso os velórios longos, embora desgastantes, permitem aos vivos a vivência dessa convivência solidária, aquela que possibilita a fala da perda e o enfrentamento da inevitabilidade da morte. Quantos de nós já não pensou que seria possível fazer voltar o tempo só para impedir um tal acontecimento fatal?

Os velórios longos também permitem à cidade pequena uma movimentação social, uma agenda obituária de compromisso com os afetos, amigos e conhecidos de modo geral. Dessa maneira, também não faltará assunto às pessoas e, nem tampouco, narrativas compartilhadas. Eu faria uma aposta com quem quiser se há, em Pedro Leopoldo, alguém que não pare sua rotina cotidiana somente para ouvir o "Panela Cheia", o carro de anúncio da morte ao público, aquele que ronda a cidade quase todos os dias anunciando “com profundo pesar”.

Já ouvi dizer que em Pedro Leopoldo a gente agenda compromissos para antes ou para depois do velório, pois é comum que algumas pessoas, de tão acostumadas que estão a freqüentar tal ambiente, não resistam à tentação de dar uma passadinha "só para não perder o costume". É claro que é também para levar solidariedade, um artigo raro em cidades grandes, e que costuma ser até excessivo em cidades pequenas.

Conta-me também aquela mesma amiga que um conhecido nosso teria ido a um velório recentemente. Chegando lá, cumprimentou a viúva e o filho do falecido. Já era tarde da noite, mais de meia noite e, como muitos, ele teria dado uma passadinha mesmo somente para ver o ambiente e ir embora. Contudo, logo que sentou, os parentes aproveitaram e foram dar uma cochilada rápida, deixando o sujeito com o morto até às 6 da manhã. Esse tal sujeito não foi embora, pois “vai que o corpo do morto some e a família me acusa de tê-lo roubado!”. Velou o morto por conta da sua reputação, mas aprendeu também que os velórios que nos pertencem são aqueles dos quais nós realmente temos algo a falar ou, no mais das vezes, a ouvir.

Publicado originalmente no Jornal Aqui, Pedro Leopoldo, em Maio de 2006.

Júnia Sales
Enviado por Júnia Sales em 29/10/2007
Reeditado em 10/11/2007
Código do texto: T714489
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