Lençóis do Avesso

Clarice se moveu entre os lençóis, remexeu-se. Olhou algumas vezes para o rádio relógio e repetia para si mesma “apenas mais cinco minutos”. Cinco minutos de quê? De mexe-remexe na cama e sono inquieto perturbante e alerta? Aquele incomodativo a lembrar-lhe de que era a hora de levantar? De que adiantam esses cinco minutos? Pouco importa... neste planeta de zumbis mecânicos trabalhadores tudo se faz pelos benditos (ou malditos) cinco minutos!

Depois de “alguns” cinco minutos e de muito relutar com os lençóis, com o despertador, com sua mente a aborrecer-lhe e consigo mesma, levanta com os cabelos esbugalhados e crateras debaixo dos olhos. Calça os chinelos, veste o hobie de ursinhos azuis e vai para a cozinha. Ainda em estado “dormindo-acordada” consegue passar um café forte e enquanto segura a caneca fumegante por entre os dedos, olha pela janela. Dia cinza.

Ela odeia. Odeia ter acordado, odeia seu próprio café, sempre com borra saliente e odeia dias cinza! E vai além... odeia seu trabalho, odeia seu hobie de ursinhos azuis, seu cabelo esbugalhado que mesmo depois do banho com creme e o tradicional escova-secador-chapinha continua a parecer um espantalho. Odeia acordar cedo, odeia morar com sua bisavó - que há muito está rezando o terço no quarto ao lado. Odeia sua vida, enfim.

Queria uma cama macia, um colchão d’água, lençóis de seda, travesseiros de pena de ganso e edredons de algodão egípcios. Um banheiro com hidromassagem, velas aromáticas, toalhas exageradamente brancas. Uma viagem pro interior, alguns dias cavalgando pelo campo sentindo o néctar das flores e das tangerinas silvestres, e quem sabe, por que não, uma companhia que apreciasse bom vinho, boa leitura e noites de luar.

Atender telefonemas e tirar fotocópias não era bem seu sonho de vida.

Talvez casar, e morar numa cabana na neve. Talvez fugir com uma comunidade hippie. Talvez fazer uma tatuagem grande de dragão nas costas. Talvez, apenas voltar para a cama e dormir mais algumas horas. Ou talvez, sumir do mapa.

Olha pela janela, uma borboletinha amarela pousa, dá o ar de sua graça e voa com suas asas de cetim de volta para o céu infinito. Assim que Clarice acompanha o planar das asinhas amarelas ouve os sinos da igreja.

"Ei espere aí... então, hoje é... Domingo"?

Sem hesitar corre para sua cama e embrenha-se em seus lençóis, feliz e aliviada.

Teria dormido o dia todo não fosse sua bisavó infernizar para fazer-lhe companhia à missa.

Ahhh... essas obrigações dominicais!!

Clarice era espírita (que a bisavó nunca desconfiasse). Dormiu durante todo o sermão, babando no banco da igreja para espanto geral das velhas beatas...

Anamaria Moraes
Enviado por Anamaria Moraes em 30/10/2007
Código do texto: T715798
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