Monteiro Lobato, meu avô

Quando criança eu achava que meu avô era Monteiro Lobato. Havia várias razões que reforçavam essa percepção, dentre elas uma comprovada semelhança física, a consciência de que meu avô era uma pessoa importante, aliada ao fato de que ele tinha um amigo chamado Dr. Wilson Lobato, considerado pela família também alguém muito importante. O fato é que essa minha falsa suposição explica um pouco o meu gosto precoce pela literatura.

A primeira leitura escolar marcante para mim foi “O gato malhado e a Andorinha Sinhá”, de Jorge Amado. Era leitura obrigatória na quinta série do Colégio Estadual Imaculada Conceição de Pedro Leopoldo e a professora, Regina Néri, teve contribuição fundamental para que eu começasse a compreender a relevância da leitura. O debate da obra em sala valeu-me a iniciação à consciência de que nem sempre os bons livros trazem finais felizes (como é o caso do amor impossível entre um gato e uma andorinha), nem sempre corroboram valores tidos como irrefutáveis pela sociedade e não é necessário e imprescindível que nos causem alegria e leveza para que os queiramos ler.

Os bons livros também nos interrogam e afrontam, apontando não raro as contradições e conflitos que fundam nossa subjetividade. Isso também aprendi com a leitura de “O perfume”, de Patrick Suskind, um livro que tomei de livre empréstimo na oitava série de Ana Celeste, à época minha professora de português no mesmo Colégio. Lido há exatos vinte anos, esse livro foi fundamental para que eu também me iniciasse em gêneros da literatura até então impensados para mim. Devo a esse livro a descoberta do quanto há de perversão em nós mesmos e do papel fundamental que a “falta” exerce no roteiro de vida que aos poucos traçamos em nossa inserção no mundo.

A minha compreensão do papel da leitura ocorreu, dessa maneira, paralelamente à descoberta de que os/as professores/as são pessoas a quem recorrer para pedir livros de empréstimo, trocar idéias e conversar sobre literatura e vida. Tendo se iniciado por volta dos dez anos de idade, esse é um hábito que não perdi até hoje.

O fato é que eu poderia citar uma lista de influências que me incitam à imersão no universo plural da literatura, desde minha imprecisa idéia acerca da suposta identidade do meu avô até a relevância dos impressos, da internet e das bibliotecas em minha profissão. Mas nada se compara a uma boa prosa que pode ocorrer entre leitores de um mesmo livro, ainda mais quando se realiza em meio a divergências, polêmicas e admirações mútuas, o que, reconheço, ocorreu às vezes entre mim e meus professores/as.

Talvez pela força dessa lembrança eu tenha ido recentemente assistir à adaptação de "O perfume" para o cinema. Saí da sessão com uma forte sensação de falta, que só consigo explicar dessa forma: o filme não trouxe de volta o prazer sentido com o debate do livro. Nada se compara à leitura compartilhada, pois é o leitor quem realiza o livro em diálogo e confronto com seu universo de valores e crenças, atribuindo sentido ao que lê, um sentido, por vezes, imprevisto pelo autor, mas construído no percurso da leitura e nas oportunidades de diálogo que o leitor constrói.

Há uma história, contada há muitos anos, de um rei muito poderoso que queria sentir novamente o gosto de uma omelete de amoras comida na infância. Ele teria contratado, então, os mais sábios cozinheiros do Reino, mas nenhum deles fez de fato a omelete pretendida. Já desolado, o rei ordenou, então, que todos os cozinheiros do Reino fossem mortos caso não conseguissem fazer a tal omelete. O mais velho dentre eles veio então procurar o Rei, pedindo-lhe que relatasse as circunstâncias em que havia comido a tal fabulosa iguaria. O Rei contou-lhe que a comeu numa noite em que ele e seu pai haviam saído para caçar e ficaram perdidos numa floresta densa e escura. Perdidos e famintos, foram ambos socorridos e acolhidos por uma senhora que lhes havia servido a única omelete que tinha. O cozinheiro ouviu atentamente, refletiu e disse-lhe: “Meu soberano, nenhum cozinheiro será capaz de fazer-lhe tal omelete. Nenhum de nós trará de volta as sensações de cumplicidade e medo sentidas no momento em que o senhor ficou perdido na floresta com seu pai, nem tampouco de alívio e gratidão no momento da acolhida pela senhora que lhes ofertou generosamente a sua única omelete”.

Essa história talvez explique bem que, passados vinte anos, o mesmo livro, adaptado para o cinema, não foi capaz de trazer de volta a sensação de prazer que a partilha com uma professora teria causado em minha juventude, este momento tão conflitante da vida. Afinal, embora o livro seja o mesmo, e o filme se esforce para imitá-lo, não somos mais quem fomos.

A compreensão da realidade dessas perdas não é algo imobilizante, mas exatamente o que nos impulsiona a criar outras situações de partilha, a reconsiderar percepções anteriores e a desconstruir verdades superadas. Enfim, a buscar outras interlocuções ou, quem sabe, a tentar reencontrar antigos professores para uma conversa renovada.

E, ainda que seja em sonho, quem sabe eu possa mesmo continuar a ser neta de Monteiro Lobato, tendo vivido uma parte de minha infância em sua casa, uma casa que mais se parecia com um castelo comandado por um Rei.

Publicado no Jornal Aqui, Pedro Leopoldo, fevereiro de 2007. Direitos autorais reservados.

Júnia Sales
Enviado por Júnia Sales em 30/10/2007
Reeditado em 10/11/2007
Código do texto: T715912
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