O cobrador de ônibus dorme

Um ônibus entra na W3 Sul. Ah, que novidade, os ônibus estão sempre entrando na W3 Sul. Os ônibus entram tanto na W3 Sul que fizeram uma faixa exclusiva para eles. Nos horários de pico, essa é a faixa que menos anda, um ônibus fica parado atrás do outro, pois não se permite que um ônibus tenha a indelicadeza de ultrapassar outro. Mas agora já não é horário de pico, é um pouco mais tarde, quase nove da manhã, e um ônibus entra na W3 Sul, vindo de alguma cidade-satélite distante, trazendo a gente humilde que faz Brasília de verdade, em vez dos políticos.

É um ônibus velho que pode muito bem estragar a qualquer momento. O passageiro que quiser descer puxa uma cordinha, em vez de apertar uma campainha, como sói acontecer em cidades que não se preocupam muito com a qualidade do transporte coletivo. Reconheço que há alguns ônibus em Brasília sem cordinha, mas tão somente porque algum vândalo tratou de arrancá-las. Há um cobrador. Evidentemente, o cobrador tem muito a agradecer pelo fato de não haver uma preocupação em melhorar a tecnologia dos ônibus, afinal, isso poderia até lhe custar o emprego.

O cobrador mora em uma das cidades-satélites distantes, digamos, São Sebastião. E por vezes o ônibus em que ele trabalha sai de uma cidade-satélite ainda mais distante, digamos, o Gama. E digamos ainda que o primeiro horário desse ônibus seja às cinco e meia da manhã. Que horas esse homem terá que acordar todos os dias? Não muito tempo depois da hora de ir dormir. Com isso, o resultado é um cobrador cansado – não, corrijo-me: um cobrador exausto. Pois enquanto o ônibus entra na W3 Sul o cobrador está literalmente esparramado sobre o caixa do ônibus, em uma tentativa de colocar o sono em dia. Não direi que sonha, mas certamente cochila.

Ora, bem sabemos que um ônibus que anda pela W3 Sul sofre quase tanta turbulência quanto um avião no meio de uma tempestade, de tal sorte que, se nem assim o cobrador acorda, deve ser porque realmente ele está acabado de cansaço. Fazia o seu próprio braço de travesseiro e ficaria assim no mínimo até o meio-dia se a cada uma ou duas quadras o ônibus não parasse e nele não embarcassem aborrecidos passageiros. Alguns desses passageiros passam cartão, e para isso não é necessário cobrador algum. Mas há aqueles que pagam com dinheiro, o que só é possível se houver um cobrador disponível para recebê-lo. Mas eis que ele está dormindo...

“Cobrador! Ô, cobrador”. Acaso pensais que isso é suficiente para despertá-lo? É porque não faz ideia do estado de torpor em que aquele homem se encontra. Geralmente é preciso cutucá-lo e assim trazê-lo de volta à nossa fugaz realidade terrena. Uma vez cutucado, o cobrador olha ao redor e se dá conta que, miseravelmente, não está em sua cama, mas trabalhando, e diante de si há um passageiro impaciente que espera algumas moedas de troco. Ele as entrega, libera a catraca, o passageiro passa e imediatamente o cobrador se lança aos braços de Morfeu.

O ônibus para em um semáforo, mas – ai! – isso não significa mais tranquilidade ao cobrador. O motorista olha para fora, enquanto espera o sinal abrir. Reconhece aquele lugar. Lembra-se de uma coisa que aconteceu com ele ali por perto. E fica com vontade de contar para alguém, como costumam fazer os que se lembram de algo do seu passado. E para quem contaria o motorista senão ao cobrador? Não são eles colegas de trabalho, parceiros, talvez até amigos? O motorista olhou pela janela, se lembrou de uma coisa do seu passado e quis então contar ao cobrador.

Havia o problema do motor. O motor de um ônibus que circula pela W3 Sul deve, por força de lei e contrato, ser o mais barulhento possível. A cada dia, o motorista fica um pouco mais surdo com o barulho do motor, mas, que fazer, tem-se que trabalhar. O diabo é que com um barulho desses o cobrador não consegue ouvir o que o motorista quer contar. Então o motorista grita, realmente grita, e o cobrador, que já dormia um sono ferrado, sobressalta-se. “Ali pra baixo, na 311, tinha uma bicicletaria. Foi ali que eu comprei a minha primeira bicicleta. Depois eu voltei pedalando dali até Santa Maria, acredita? Isso faz mais de 30 anos”. Eram esses, portanto, os pensamentos que ocupavam a mente do motorista enquanto o semáforo se recusava a abrir, o que, por certo, configura uma estratégia do governo para garantir boas recordações aos motoristas de ônibus.

Mas o que é que o cobrador tinha a ver com isso? Acordá-lo do seu sono para falar de bicicletas de 30 anos atrás! Deu um grunhido qualquer assentindo e nada mais. De repente, um barulho irritante. Alguém havia puxado a cordinha e queria descer. Quando não são os passageiros que sobem, são os passageiros que descem. Não se tem paz nos ônibus que entram na W3 Sul.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 29/01/2021
Reeditado em 29/01/2021
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