Cumprimentos de aniversário.

Aquele senhor é inesquecível. Tio postiço. Ele era casado com a minha tia legítima. Quando eu me lembro de um homem bom, alegre, disposto para a vida e de boas intenções eu me lembro do tio Edgard.

Eu gostaria de saber mais sobre ele, mas jamais tive como. De origem alemã, nunca soube se os familiares vieram fugidos de Hitler ou marcados pela miséria decorrente da guerra. Jamais ouvi alguma palavra, algum comentário.

Era estranho mas, na família do meu pai, não se falava do passado, das memórias, da construção histórica de cada um deles. Para mim, uma tragédia o não saber das raízes, o evitar o contato com o antigo, o não valorizar a vida dos ancestrais. Mas eles eram assim. Ponto.

Sempre solícito, o tio Edgard gostava de brincadeiras ingênuas e persistentes. Sorridente, ele ia sempre repetindo as mesmas brincadeiras e meus irmãos e eu achávamos engraçadíssimo. Ele se interessava por nós, jamais desdenhou de situações ou pessoas. Desde sempre me lembro do meu tio já grisalho, que gostava de fumar e de uma cerveja gelada.

No Natal passávamos juntos, invariavelmente. E era bom. Ia ele chegando sempre a empurrar a cadeira de rodas da minha tia, mas nunca o vi chorando ou se lastimando em função das dificuldades da vida.

Mas quando chegava um aniversário, lá vinha o tio repetitivamente hilário:

- “Colhendo mais uma abóbora, hein, Verinha. Mais uma abóbora, hein?” E todos os anos era a mesma coisa. Eu nunca soube o significado disso, mas o colher a abóbora ficou fixo na minha mente como uma lembrança sempre agradável e infantilizada de um homem bom.

E, depois de tudo, quando cumprimento os meus chegados, vou na mesma entonação ainda hoje: “colhendo mais uma abóbora, filho?”, “colhendo mais uma abóbora, irmanita?” E sempre vou falar assim, como uma homenagem, como enviando um agrado, um beijo para o meu padrinho.

E quando era aniversário dele, eu me vingava: “colhendo mais uma abóbora, tio?”

E ele: “Não. Agora é jaca. É vecchiaia. Vecchia bruta!”, destacando o avançar dos anos.

Uma vez por semana eu ia visitá-los. Era preferencialmente às terças à tarde, quando eu tinha um horário mais extenso disponível entre as aulas. Então eu levava alguma rosca, pão italiano, alguma torta. Mas um dia o frio estava cortando a pele, além da chuva e eu cheguei ao apartamento deles no Ipiranga com os pés encharcados, sabendo que iriam ficar assim o dia todo pois eu só voltaria para a minha casa, do outro lado da cidade, às 11 da noite. Ele me fez um copo de Nescau “pelandinho” como dizia a minha tia. Foi o Nescau mais gostoso que tomei na vida. Inesquecível, com todo o carinho que eles sempre me acolheram naquele apartamento tão simples da rua Silva Bueno.

O tempo nunca foi condescendente com a vida. Acabei me mudando de São Paulo, pois a cidade estava acabando comigo. Jamais deixei de me comunicar. Eles tiveram dificuldades, venderam o telefone e a separação foi se tornando algo real, triste e irreversível.

Um dia eu soube da morte do tio Edgard. Mas, por várias evidências, tudo indica que ele fora assassinado pela própria filha, que havia sido criada pela vó aprendendo a odiar o pai. E quando a encontramos, completamente fora de si, ela dizia: “de repente as costas do meu pai se rasgaram na sala de casa...” A filha fora criada para odiar aquele homem de uma estatura moral ímpar. A sua avó (que eu jamais considerei como minha, mas sim a “mãe do pai”) desconhecia a doçura, o encantamento pela vida, o sorriso e o respeito ao próximo. Em todas as coisas, em todas as falas, ela mostrava para a neta que o pai não era digno. A menina cresceu ouvindo isso todos os dias da sua vida. A filha havia surtado após o falecimento da mãe e não recobrara a lucidez. Com a morte do pai ela se transformou em moradora de rua. E rezo para que o tio Edgard a perdoe.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 14/02/2021
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