Amor numa hora dessas

Depois de um tempo pedalando, resolvo parar para descansar e tomar um pouco de água. Escolho um local privilegiado, ou seja, bem ao lado de uma araucária. Não é ainda o tempo do pinhão, mas só a lembrança de que é isso o que araucárias produzem já me satisfaz. Essa araucária em especial compete com um prédio ao seu lado. Há quem abra a janela e dê de cara com os seus galhos, o que me parece uma boa maneira para se começar o dia. A rua é calma, mas não nos iludamos, pois a alguns metros dali há uma daquelas aborrecidas rodovias. Não, não iremos até lá, fiquemos parados ao lado dessa araucária.

Desde que a pandemia nos obrigou a andar de máscaras por aí, beber água durante as pedaladas se transformou em um custoso ritual, que exige mesmo uma parada. Com cuidado, tiro um lado da máscara, procurando não levar adiante os meus óculos, coisa que nem sempre consigo. Tiro então o outro lado e fico segurando a máscara com uma mão, enquanto a outra eu uso para segurar a garrafinha e derramar a água em minha boca. Depois o processo se inverte e a máscara volta ao seu lugar e à sua função, ou seja, conter o vírus e, de quebra, embaçar os meus óculos.

Agora é continuar a viagem, mas me detenho a observar um casal de namorados que sobe a rua. É apenas presunção minha que sejam namorados, que não tenham ainda se casado ou mesmo noivado. Os dois me parecem ainda muito jovens, mal devem ter saído dos 20 anos. Que formam um par romântico é fora de dúvida, andam de mãos dadas como fazem todos os que tiveram a ventura de encontrar alguém. Também usam máscaras, como exigem os tempos. Sobem a rua e eu os vejo passarem ao meu lado.

E sinto um certo alívio ao constatar que, por piores que sejam as perspectivas, ainda há pessoas que se amam por aí, que não perderam um ao outro para o vírus, que ousam até apostar no futuro, pois um casal de namorados tem sonhos e planos, pouco importando as ameaças que o mundo lhe ofereça.

Olho para os dois, que seguem caminhando por uma estrada de chão, e me pergunto a respeito de seus planos e sonhos. Os dois andam com pressa, como se tivessem algo importante para fazer. Como é o final do dia, devem estar voltando do trabalho – ou seria do estágio? Provavelmente, um trabalho que dá a eles menos do que desejam e merecem, mas que fazer? É preciso ter paciência, é preciso economizar, e quem sabe um dia, depois que tudo isso passar, até seja possível se casar e comprar uma casa para viver. Até lá, contudo, é preciso andar com pressa para dar conta de tudo, é preciso andar com pressa e a pé.

Os dois seguem pelo meio da rua, não se vê carro nenhum por perto. Quando se aproximam de uma calçada, entendo que chegaram ao seu destino. Resolvo pedalar na direção deles. Ainda vejo a moça tentando abrir o portão. É uma casa simples, não se vê o luxo do prédio de esquina, ao lado da araucária. Deixo então os dois para trás e prossigo o passeio, pensando algumas coisas, cá com os meus botões.

É evidente que eu os invejo. Já caminhei por ruas como essa de mãos dadas com algumas pessoas, mas nesses casos havia sempre algum descompasso entre nós, sempre havia um que gostava e um que sonhava mais do que o outro. Em algum momento, eu passei a duvidar que seria possível estar ajustado à pessoa ao meu lado, e desde então não houve mais caminhadas de mãos dadas, por nenhuma rua.

Mas teria eu motivos para acreditar que esses dois namorados estejam plenamente ajustados entre si? Não tenho, talvez não se gostem tanto assim, talvez um deles já cogite terminar. Talvez se gostem e mais tarde a coisa desande. Ah, aqui estou pensando coisas negativas outra vez. É melhor guardar apenas isso: em plena pandemia, ainda se ama por aí.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 04/04/2021
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