A POLIGLOTA DO PELÔ

Já tive muitas experiências interessantes em minha vida, mas esta que irei relatar sempre fará parte dos meus bate papos nas rodas de amigos.

Ainda lembro como se fosse ontem, estávamos no Pelourinho, Salvador, eu e meu amigo Tiago; tínhamos ido assistir a uma peça no THETRO XVIII, A comida de Nzinga, a qual relatava a história de vida de uma princesa da África, seu processo de desenvolvimento, suas lutas e conquistas permeadas a todo tempo por alimentos e pratos típicos da culinária africana. Linda a peça, mas não é bem isso que quero registrar; assim que saímos paramos em um barzinho para apreciar um show ao vivo de voz e violão.

O cara era muito bom, só cantava as melhores da MPB. A noite teria sido perfeita se não fosse os constantes incômodos promovidos por ambulantes e pedintes que de minuto em minuto apareciam quebrando a magia do momento.

Até onde sei, essa é uma prática constante, e isso afasta e muito os turistas do Centro Histórico soteropolitano.

Bem, após educadamente tantos nãos, cansei e resolvi mudar de estratégia justamente quando Maria chegou. Esse não era seu nome, na verdade não faço a mínima idéia de qual seja seu nome, o que realmente importa é que ela chegou e acabou sendo a cobaia para aplicação de minha nova tática.

- Boa noite, vocês poderiam comprar um colar para ajudar meu bebê? – dizia humildemente uma voz feminina.

Era “Maria”, jovem negra com aproximadamente vinte e dois anos de idade, grávida de sete meses, vestida em calça e casaco de moletom deixando a barriga à mostra.

Nesse instante me fiz de desentendido, olhei para meu amigo e sacolejei os ombros. Ela, porém, insistiu:

- Compra moço, para eu poder criar o meu filhinho...

- I don’t understand... What are you speaking? – disse eu, dando uma de esperto, falando em inglês.

- Ô moço, fale em português, eu sei que você é brasileiro. Eu conheço estrangeiro pelo sotaque – disse ela carinhosamente.

Não contive meu riso, quer dizer, gargalhada e disse:

- Oh my God!!! What ‘s she speaking? – falei olhando para Tiago.

- Ó meu Deus!? – falava ela traduzindo o que eu havia dito.

Fiquei surpreso e minha única reação foi continuar a gargalhar.

- Você não está me entendendo? – perguntou-me ela quase soletrando cada sílaba.

- No, I don’t understand you! – respondi.

- Viu, tá vendo que você me entende – disse ela.

Nesse instante quase que “Maria” conseguia me desarmar, eu, porém, ainda entre risos insistia, em inglês, que não conseguia entender o que aquela jovem grávida dizia.

- Ok boy, I Will speak in English with you. – disse ela enquanto eu ria.

- Great! Do you speak English? – questionei engolindo meu riso.

- So so…

Começamos a conversar em inglês. Ela, insistentemente, tentava sem sucesso convencer-me a comprar três de seus colares.

- No, Thanks, I don’t want – dizia eu querendo por um ponto final naquela conversa.

- Ô moço, vamos falar em português, seu amigo já está sem graça – disse “Maria” olhando para Tiago.

- Por mim não... – disse Tiago.

“Pronto, acabou de me entregar o miserável!” – pensei.

- ... mas se quiser falar em francês fique à vontade – continuou ele.

“Maria” não pestanejou, voltou-se para meu amigo e começaram a conversar em francês. Custei a crer no que via, fiquei pasmo e sem graça e mais: sem entender o que eles falavam.

- Tudo bem, tudo bem, eu me entrego, eu me entrego – disse eu – menina, onde foi que você aprendeu a falar desse jeito?

- Aqui na rua mesmo, com pessoas como vocês...

E ela disse mais, contou-nos que nunca havia feito um curso de idiomas, que estava grávida do terceiro filho, que não tinha marido, pois o mesmo tinha sido morto por se envolver com drogas, que sonhava trabalhar como intérprete, mas que a vida não lhe tinha sido generosa...

Essa jovem nos fez ficar boquiabertos durante mais alguns instantes: falou em espanhol, em italiano e ainda pronunciou algumas frases, que víamos que eram decoradas, em alemão.

Depois dessa demonstração fui povoado por uma interrogação referente ao papel da escola nos dias de hoje, uma vez que ficou mais do que comprovado que a rua tem ensinado, e sempre ensinou, muito mais do que qualquer sala de aula. Confesso que rasgaria meu diploma de inglês caso possuísse algum! Tenho muito a aprender, e uma das grandes lições que nunca mais esquecerei, é que cada um é um ser em potencial, afinal “cada ser em si carrega o dom de ser capaz, de ser feliz”.

Ah, já ia esquecendo, dei a mão a palmatória e comprei um dos colares. Foi o mínimo que pude fazer na tentativa de me redimir.

Luciano do Carmo Tavares. Pedagogo, membro da Academia de Letras e Artes de Tucano (ALAT).

lucianotavareslt@hotmail.com

20 e 24 de outubro de 2007

Ducarmo
Enviado por Ducarmo em 05/11/2007
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