Crônicas Médicas - Pavor de Agulhas

Às vezes, no dia-a-dia da atenção à saúde, algumas coisas que acontecem nos fazem refletir como profissionais e como pessoas. Hoje, um dia que tinha tudo para ser como qualquer outro nos estágios da faculdade, transformou-se em questionamentos e reflexão.

Cheguei logo cedo no posto de saúde e, como de costume, fui o primeiro de meu grupo a estar lá. Entrei, cumprimentei alguns profissionais, conversei com outros e fui para a copa tomar um café enquanto esperava meus colegas chegarem.

Logo de cara, o novo médico da unidade me abordou e começamos a conversar. Ainda que eu seja estudante, estou há mais tempo que ele no posto e, como futuro colega de trabalho e alguém que preza pelo bem-estar no ambiente, prontifiquei-me a dar as boas-vindas e acolhê-lo da melhor forma possível. No entanto, o texto de hoje não é sobre isso.

Depois do café, voltei aos corredores da unidade de saúde, esperando encontrar a preceptora de meu grupo. Descobri que ela estava em atendimento, fazendo a coleta de exame preventivo de câncer de colo do útero. Parei, então, em frente à porta e aguardei até que a consulta chegasse ao fim.

Nesse meio tempo, o fato em que se baseia esta crônica aconteceu.

Próximas a mim, aguardando para coleta de exame de sangue, mãe e filha esperavam sem que eu as tivesse notado até pouco antes de serem chamadas. Com a mãe encostada na parede e a filha repousando em suas pernas, as duas permaneciam em silêncio, esperando que a tão temida coleta de exames acontecesse...

Opa! Pera lá! Temida coleta de exames? Por que nos referimos, em alguns casos, dessa maneira a algo que tende a beneficiar nossa saúde? Esse foi o questionamento que me fiz quando notei mãe e filha ali naquele corredor.

Alguns segundos antes de serem chamadas, a garotinha, que não passava dos cinco anos de idade, começou a resmungar algo sobre estar com medo. A mãe, sem saber muito o que fazer, nada respondeu e permaneceu ali, parada. A filha, angustiada com a espera, aflita com a coleta e revoltada com a falta de respostas da mãe, passou a choramingar.

“Eu não quero, vai doer”, disse ela, já com lágrimas brotando em seus olhos.

“Próximo”, gritou a técnica em enfermagem de dentro da salinha. A mãe, de prontidão, atendeu ao chamado, e, tomando a filha pelos braços, começou a caminhar em direção à porta.

Nesse momento, as poucas lágrimas da filha começaram a se transformar em choro mais volumoso e os resmungos passaram a ser gritos. “Eu não quero! Eu não quero”, repetia a jovenzinha incessantemente, sem sair do lugar.

Com um pouco de esforço e alguns segundos de espera, a mãe conseguiu levar a pequena para dentro da sala, onde os gritos continuaram a aumentar.

Pude ouvir duas técnicas conversando com mãe e filha, pedindo para que a mãe se sentasse e colocasse a garotinha em seu colo. Vi, pela porta, a uma certa distância, a mãe, com olhos de quem pedia para que a menina parasse de fazer escândalo, abraçar-se a ela na tentativa de impedir que braços e pernas se debatessem sem controle.

E o sucesso estava longe de ser alcançado. A cada tentativa, mais a filha esperneava e gritava que iria doer ou que já estava doendo, em um “espetáculo” que ainda não havia presenciado em minhas práticas. É claro que já vi criança chorar e dar trabalho para receber injeção, receber vacinas e mesmo para coletar sangue, mas nunca um episódio como aquele.

Presenciei aquele evento por quase meia hora enquanto esperava ser direcionado para outro setor de atendimento. Quando saí de lá, a coleta estava a inimagináveis minutos de se concretizar. A criança não parava, fosse deitada ou sentada, solta ou presa pelas mãos dos adultos que a cercavam, nada dava conta. Sinceramente, não sei se conseguiram concluir o procedimento.

Mas, agora, vocês podem se perguntar: por que isso tudo me fez refletir e decidir escrever esta crônica? Bem, em nenhum momento, preocuparam-se em perguntar para aquela menina o porquê de todo aquele medo. Tentaram a tática do “vai ser só uma picadinha de formiga”, mas será que a garota via isso como algo positivo? Tentaram música clássica instrumental. Sério isso? Só não tentaram entender a paciente. Eu, da distância que guardei e da insegurança para intervir, perguntei-me várias por que ela tanto chorava.

Dizem que os dois únicos medos que temos ao nascer são de cair e de barulhos altos; todos os outros são construídos/ensinados social e culturalmente. Não era o caso de um medo natural ali: a criança havia aprendido a ter medo de agulhas. Esse pensamento ficou passando e repassando em minha mente.

A cada volta que essa ideia dava, recordava-me de diferentes episódios em que vi mães, pais, avós, tios e outras pessoas grandes utilizarem-se das agulhadas como forma de colocar medo em crianças. Quantas vezes não ouvi “coma isso ou vai ficar doente e vai precisar tomar injeção” ou “se fizer isso, vou levar no médico para ele te dar uma agulhada”? Foram incontáveis vezes.

A isso, chamamos terrorismo psicológico e, quando acreditamos estar resolvendo um problema, estamos, em vez disso, criando um trauma muito maior e mais difícil de ser contornado. A educação da criança deve, sim, acontecer, mas não pelo medo, não se utilizando de artifícios como esse.

Não sei se esse é o caso daquela mãe e daquela menina, mas pode muito bem ser essa a situação. Não quero julgar nem ensinar os pais a criarem seus filhos (até por que não sou pai e nada entendo sobre o assunto), mas sou filho e deixo aqui a reflexão para aqueles que acharem fazer sentido algo do que foi dito neste texto.

Vitor do Carmo Martins
Enviado por Vitor do Carmo Martins em 12/05/2021
Código do texto: T7253880
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