Você não está só

Depois de muito me remexer em vão na cama, buscando um sono cada vez mais difícil, o estômago começou a protestar e eu tive que me levantar a fim de comer alguma coisa. É coisa muito aborrecida ter que se levantar para comer à noite, porque exige que depois eu ainda vá escovar os dentes mais uma vez. Pego umas bolachas e, sem paciência para me sentar, vou à janela e fico a olhar para a escuridão de fora, ao mesmo tempo que penso na escuridão de dentro: a vida, esse joguinho cansativo e sem regras claras.

De repente, uma frase me é jogada na mente: “Você não está só”. Ouvi como se quem falasse fosse outra pessoa, mas o som veio da minha cabeça. Não raciocinei, não formulei esse pensamento, ele apenas apareceu para mim: “Você não está só”. Talvez fosse o eco de alguma conversa passada, talvez remetesse a uma discussão da qual nem participei, alguma coisa que eu havia lido ou visto na televisão. O curioso é que a frase tenha vindo à tona justamente naquela hora noturna em que, definitivamente, eu estava só.

Ao menos parecia estar. Passou-me pela cabeça que aquela frase poderia refletir a verdade e que eu, ao contrário do que acreditava, não estava realmente só. Quem quer que estivesse comigo lá, contudo, era invisível aos meus olhos. Pensei em anjos e espíritos, em arautos de outra dimensão, uma em que tudo é mais leve, mais simples e mais bonito. Estaria então eu rodeado de seres fantásticos, de gente já falecida, ou até de gente que nunca chegou a viver como nós? Olhei ao redor e não percebi nenhum sinal deles.

Pensei então no motivo que teriam esses seres para me comunicar aquilo: “Você não está só”. Não me ocorreu outra coisa que não a de que, com isso, pretenderiam me consolar de alguma maneira, fazer com que a minha evidente solidão doesse um pouco menos, alimentar a esperança de dias melhores. Mas o problema é que uma mensagem como aquela, por mais divina que fosse a sua origem, não me consola.

Se eu não estou só, pressuponho que ninguém esteja e que ao redor de todo mundo exista essa rede de seres invisíveis. Acaso teriam esses seres o poder de impedir que coisas ruins sobrevenham às pessoas que não estão sós? Talvez uma ou outra, mas existem coisas muito ruins que acontecem às pessoas mesmo que elas não estejam sós. Penso em uma mulher que é estuprada, em uma criança que é abusada... Havia uma gama imperceptível de criaturas ao seu redor e, contudo, a mulher foi estuprada, a criança abusada.

Coisas horríveis como essas podem acontecer, inclusive, com pessoas que acreditam que não estão sós, e que, no momento da agonia, talvez clamassem por uma ajuda deles – a ajuda, porém, não veio. A misteriosa presença, então, parece não ser suficiente para impedir que o pior nos aconteça. Lembro-me de meus erros, das bobagens que fiz, muitas vezes só por ignorância, por não saber qual era o jeito certo de agir – nenhum ser que me acompanhava contou.

Talvez então o consolo da frase não seja esse, mas a compreensão de que não sou o único a sentir o que sinto, que é inclusive algo bem comum, e que existe outra realidade, vindoura, em que essa nossa agitação deixará de existir. Isso me parece um pouco mais aceitável, mas ainda é difícil achar ânimo se se sabe que apenas com a morte tudo irá se resolver.

Pode ser, vá lá, que eu não esteja só, mas não consigo escapar da minha própria responsabilidade, pois não imagino que qualquer criatura se disponha a fazer aquilo que cabe apenas a mim. As decisões da minha vida continuarão tendo que ser tomadas por mim, eu, indivíduo, eu, isolado, e ninguém mais. E esse inevitável peso é a maior parte do problema.

Chego sozinho a uma decisão, saio da janela e escovo os dentes. Apago a luz – não vejo ninguém.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 16/05/2021
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