Catador de latinhas

Todas as manhãs o sol aparece depois que eu abro os olhos. Acordo muito cedo, o sereno que entra pela janela me desperta para um dia cheio, como foram outros tantos. Deixo uma almofada ao lado da cama, que serve para meus joelhos não doerem enquanto agradeço ao criador por mais um período de luta – penitência dos novos tempos.

O café preto eu tomo na esquina de casa, oferecido pelo dono da confeitaria, já acostumado com os pedintes. Sou um frequentador assíduo desse lugar: um dos únicos da cidade que não me olham de baixo para cima. Talvez por costume, ou mesmo compaixão.

Dali, sigo ao meu trabalho, revirando todo o lixo das ruas atrás de um alumínio que pode comprar o jantar e quem sabe o almoço do dia seguinte.

Tempos difíceis. Os cidadãos daqui não sabem separar o reciclável do lixo comum. Até eu, que tenho só o fundamental – e olhe lá – lembro bem quando a professora de ciências explicou as maneiras corretas de descarte.

Ah, aquelas aulas são tão importantes ao meu trabalho que se eu soubesse onde viria parar, tinha aproveitado ainda mais. Às vezes me falta saber se um ou outro pedaço de plástico é reaproveitável.

Na dúvida, eu recolho. Coloco no carrinho de mão e levo ao Seu Moacir. Lá ele separa o que pretende comprar, coloca na esteira para seus funcionários fuçarem, e me deixa de canto, até aparecer depois de um tempo com a soma completa de todo o material que eu consegui pegar. Confio nos valores que me passa, afinal, fazer contas não é meu forte.

São míseros reais para ele. Mas todo dia é uma fortuna para mim.

Modéstia à parte, sou bem conhecido nessa comunidade. Ao ponto até de conversar por alguns minutos com meninos do prédio grande sem ninguém achar que estou os importunando. Se acham, nunca me disseram nada. E os meninos gostam de ouvir minhas histórias.

Um deles, teve um dia, me perguntou como vim parar nessa situação, de lixo em lixo, lata em lata, dependendo do dono do negócio não me passar a perna. Disse a ele os caminhos que já passei e as tantas oportunidades que deixei de abraçar. Me regozijei pensando que um velho catador de latinhas pudesse, em algum momento, servir de exemplo para um garoto tão bem instruído assim.

A minha vida é um drama, menino.

Como na guerra, eu vivo com medo, convivo com a dor. A paz é um estado de espírito para aqueles selecionados.

Digo ao Seu Moacir a minha frase preferida, todo santo dia: ‘Sua consciência é o seu guia’. Ele sorri.

Pego logo meu dinheiro e fujo atrás da minha marmita.

A fome é a pior artilharia dessa batalha.

E assim vou levando. Amanhã acordo, de novo, antes do sol nascer.

Kallil Dib
Enviado por Kallil Dib em 01/06/2021
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