A lição do quarto escuro

À partir do dia cinco de março, dia que meu pai recebeu o resultado do exame que comprovava que ele havia se contaminado pelo Covid

entrei em uma crise muito forte de depressão e ansiedade. Meu psicológico estava há muito fragilizado e a notícia foi um gatilho certeiro para ativar uma nova crise , que há tempos não acontecia. Passei mais de doze dias , praticamente improdutiva, prostrada, com crises frequentes de choro, sem me alimentar e dormir direito, taquicardia, crise de pânico...Ficava horas paralisada, olhando firmemente em uma só direção ou estirada em uma cama. Minha mente doente criava os piores cenários possíveis, não me envergonho de dizer que imaginava que toda a nossa família havia se contaminado, e seria o extermínio em massa. Busquei ajuda terapêutica ,dobrei a dose do antidepressivo que faço uso há anos. Tudo em vão!!Uma loucura sem precedentes. Uma intuição muito forte, que sempre me acompanhou ,me preparava para o agravamento da saúde de meu pai, embora lutasse contra esse sentimento , tentando acreditar no milagre.

Em meio a todo sofrimento e loucura, o que às vezes me acalmava era sentar sozinha à beira do jardim ,na casa de meus pais, e ficar ali olhando em única direção. Um dia ,estava ali, e em meio ao desespero, ousei falar em voz alta : " Deus, onde o Senhor está, não estás vendo o meu sofrimento??"

Como em questão de segundos, veio em minha mente a seguinte mensagem , muito clara ,como se estivesse sussurrando em meios ouvidos . " Estou aqui , bem do lado. Sabe um pai , quando o filho chega a uma determinada idade ,ele se vê na obrigação de ensiná-lo a dormir sozinho no quarto ,sem iluminação. Isso o fará conquistar maturidade, independência e fará bem ao seu processo de crescimento . No início desse processo ,o filho sentirá medos, sensação de solidão, e isso o fará ter uma visão distorcida da realidade. O guarda- roupa poderá parecer um fantasma ,a escrivaninha pode parecer um monstro ,pronto para o devorar, as frestas da janela pode parecer uma assombração, mas não passa de coisas naturais que sempre fizeram parte da mobília do quarto, sempre estiveram ali.

Então, chega o dia em que todos os seres humanos têm que enfrentar sozinhos o quarto escuro: o quarto da morte, da doença, da separação de entes queridos, da vulnerabilidade.

Ninguém está isento desse dia, nunca poupei ninguém, independente de localização geográfica, idade, raça, religião, classe social. A única coisa que muda é o tempo de esse processo acontecer, e eu sei bem a hora exata. Para muitos pode parecer demorar, para outros pode parecer cedo demais. Não existe filho mimado, comigo não há predileção ,nem barganha ou ajuda nas minhas ações. Todos passarão por esse dia!! E não é você que ficaria isenta!! Olhe à sua volta quantos estão na mesma situação ,ou talvez pior, não seja egoísta!!Nunca prometi imortalidade, facilidade à ninguém. O medo ,a dor, o apego, o amor ,a cultura faz com que esses momentos pareçam assustadores, terríveis, porém são naturais, fazem parte da existência terrena."

Entendi claramente o aviso. Sempre lidei muito mal, com resistência absoluta e não

aceitação a temas relacionados à morte. Tinha uma falsa ilusão de que sempre seria poupada, que o que tanto temia nunca me aconteceria! Triste utopia!!

Alguém pode me perguntar: " Com essas convicções, com essa fé ,deve ser fácil lidar com a separação um ente querido??" Respondo categoricamente : "Não". Minha prima Lídia me falou uma frase , que ela tinha acabado de ouvir de alguém, que é muito pertinente ao momento que estamos vivenciando. " A certeza da eternidade não anula a nossa humanidade". O fato de crermos em uma vida após a morte, termos certeza do encontro com nossos entes queridos que já se foram, nos traz conforto ,esperança

para o futuro, mas não nos isenta da dor da saudade, das lembranças, o sofrimento do inesperado, da adaptação da vida ,com a ausência da pessoa que ama.

Abigail Roha
Enviado por Abigail Roha em 16/06/2021
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