A traição do bem

Outro dia , estávamos conversando aleatoriamente em casa e de repente minha mãe observou uma foto em sua rede social , que retratava uma cena ,que a fez recordar a infância e uma tradição comum à sua época : a famosa traição do bem. Fiquei curiosa, quando ela emitiu a seguinte frase: " O tio Zezinho gostava de "dar traição" em meu pai" . Logo quis saber do que se tratava aquela expressão ,e ao ouvir a explicação, me lembrei de que também participei de alguns desses momentos , enquanto criança ,na casa de meus avós maternos.

Antigamente ,era uma tradição ,um costume das comunidades rurais do Interior de Goiás ( Centro Oeste), talvez também comum em outras regiões, não tenho conhecimento, o hábito de " dar traição" no amigo, quase sempre vizinho de propriedade. "Dar traição" significava no contexto, surpreender o amigo, quase sempre na madrugada, para anunciar uma organização de trabalho coletivo gratuito, a famosa " demão" ou "mutirão" , que era um grupo de vários trabalhadores voluntários , que cedia a sua mão de obra na ocasião. Esse grupo , às vezes de até sessenta , setenta homens se dispunha naquele dia a realizar uma tarefa urgente e necessária na propriedade rural naquele momento : limpar o canal por onde passava a água , vinda de nascentes que ficava a quilômetros da residência, o famoso rego d' água, às vezes os trabalhadores ocupavam em limpar uma plantação de arroz ou qualquer outro cereal, as chamadas " roças", ou fazer a colheita de café ou outro produto , cultivado na fazenda.

O que chamava atenção nesse hábito cultural , era o entretenimento aliado ao evento, parecia mais algo festivo e prazeroso do que o trabalho pesado realizado. O anúncio da " traição " era recebido de modo festivo pela família escolhida. Sempre na madrugada do anúncio se cantava músicas , dançava e se divertia. No dia posterior ao mutirão , continuava as comemorações com os chamados " pagodes" . Interessante que a pessoa que dava a traição , além de organizar o mutirão de trabalho ,era ele que também providenciava o almoço para todos os trabalhadores.

Fiquei pensando nas similaridades e diferenças das traições da sociedade moderna. O ponto que achei em comum foi apenas o momento " na madrugada" dando a entender que acontece de forma surpreendente e inesperada: é o cônjuge que em altas madrugadas, se vale de redes sociais para estabelecer contatos, abrir brechas e possibilitar a chance de relacionamento amoroso extraconjugal. São os políticos que se reúnem em altas madrugadas para aprovar projetos ,leis que ferem, usurpam direitos garantidos com muita luta e suor de trabalhadores. São os "amigos" que de forma mascarada ,se valem da proximidade, da intimidade do amigo para analisar suas fraquezas e fragilidades para posteriormente , quando seus caprichos e desejos de exploração não forem mais atendidos, comece a expor a intimidade e usá-la como arma de vingança.

As causas da traição do bem quase sempre era o espírito solidário, a bondade ,o desejo de partilha, a demonstração de reciprocidade, de afeto, a vontade de levar alegria à pessoa querida, as causas das traições atuais são opostas: inveja, desejo de poder, ambição etc...

As consequências das traições do bem sempre era o festejo, a alegria ,a descontração, a interação, a gratidão, a fraternidade. As consequências das traições atuais sempre são desastrosas : tragédia familiar, afastamento de amigos, desvios de recursos públicos, desconfiança, quebra de aliança, acordos, mágoas , vinganças etc...

Abigail Roha
Enviado por Abigail Roha em 21/07/2021
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