Quando o carnaval encena a vida

Todos nós sabemos que naquela cidade não há mais desfile público de Carnaval. Em razão justificada de segurança ou por falta de verbas, o fato é que Carnaval de rua não há mais.

Nem por isto o folião deixa de sair, mesmo que em outras ocasiões. Isto se pode ver, por exemplo, na tradicional festa de Bregas, que mistura um pouco de Carnaval e da expressão pública e sem culpas daquela avacalhação que grassa em todos nós, quer queiramos quer não.

Foi possível notar-se algo de carnavalesco também no desfile da Independência, o que, aliás, não faria mal a nenhum povo se ele fosse de fato independente.

O problema de se confundirem carnaval com celebração da Independência do país reside menos no fato de que ao invés de pelotões termos blocos e carros alegóricos, mas no lugar de cidadãos apenas foliões.

Coisa curiosa é que, embora clamando por proteção ao meio ambiente, tenha o tal desfile gerado uma bagatela de lixo jogado às ruas. Coisa curiosa foi passear pelas ruas daquela cidade após o desfile, com suas vielas emporcalhadas por restos de bandeiras do Brasil, mensagens de esperança ambiental, rotos jornais produzidos por escolas para tratar da temática ‘cidadania’ e, ainda, inúmeras sacolinhas de plástico distribuídas por grupo de catadores de resíduos sólidos.

Coisa curiosa foi verificar que a tal cidadania participativa enunciada no desfile tornava-se mera retórica tanto no lixo jogado às ruas quanto na falta de respeito com que foram tratadas muitas crianças e jovens que – desavisados – se deixavam por vezes sair folgadamente da fila, da tal ‘ordem unida’ tão ao gosto de fiscais, militares e seus substitutos de plantão.

Ainda mais curioso foi verem-se discursos clamorosos pela valorização dos vários ofícios – uma mensagem de fato muito importante naquele desfile aos Ofícios do Brasil, mas num contexto em que a docência – em outras épocas um dos mais respeitáveis ofícios – é tão pouco valorizado. Que ofício de mestre se espera ver exercido com ombros declinados e olhares sem brilho, tal como naquele Carnaval temporão?

Aquele desfile foi aplaudido, sentido, vivenciado pelas pessoas da cidade. Aquela cidade parou para ver o espetáculo que falava menos de Independência e mais, digamos, da própria vida de pessoas comuns, daquelas que constróem, com seu trabalho, um país de ofícios, mesmo que desiguais.

As escolas em desfile encenaram sua pluralidade, renderam homenagens justíssimas a dignos profissionais em todas as áreas. Nunca se viu desfile tão bonito, cheio de vida e de energia. E os problemas que se verificaram, decerto, escapam ao controle de qualquer organização cuidadosa, dizem respeito mesmo à dinâmica social, inclusive à falta de cuidado comum com a cidade e às injustiças que assolam aquele país incerto de seu destino.

Mas o olhar de uma professora de História não pôde deixar de estranhar ao ver uma criança negra vestida de escrava – encarnando, ao lado do que seriam os índios e os portugueses, todos ancestrais brasileiros. A esta escola, que naturalizou a condição afro-brasileira na condição de escrava, colocando uma criança negra para desfilar na principal rua de sua cidade vestida de escrava, dirigiram-se temores de que aquela não fosse apenas uma encenação pública, mas uma prática mesmo de sujeição social e educacional de crianças negras a todo processo vivenciado por seus ancestrais na diáspora – prática de sujeição que a escola ainda teima em repetir, mesmo que não saiba.

Evidentemente esta simbologia da escravização simbólica de afro-brasileiros não é exclusiva de uma ou outra escola, nem mesmo é exclusividade praticada naquela cidade. Está no tecido social e é movimento silencioso e negado, embora praticado na mídia, no trabalho e nas práticas de saúde. Como se vê, também e infelizmente na escola.

E, para quem não entendeu ainda de que se trata, explico que uma das escolas daquela cidade fez crianças empunharem uma faixa com justa homenagem a ancestrais dos brasileiros: indígenas, ‘escravos’ e portugueses. Teria sido mais adequado, contudo, homenagearem-se os diversos ofícios trazidos pelos africanos em sua bagagem ancestral, mas a folia optou pela herança parcial que foi a escravização, traduzindo e substituindo, naturalmente, a palavra ‘africanos’ por ‘escravos’.

O desfile acabou reproduzindo, em cena pública, o que se vê em livros didáticos e no cotidiano social – um racismo implícito e não reconhecido, tomado como natural por quem o pratica, mas com certeza vivido em pele exposta por quem o recebe.

Naquele momento, teria sido bom que o desfile fosse meramente uma encenação carnavalesca – aquela em que a ordem social é momentaneamente subvertida e em que qualquer um pode mudar - sem riscos - de papel: um pobre pode ser rei, um rei pode ser vagabundo, uma súdita pode ser rainha, uma criança pode ser herói.

Mas a opção foi outra. A criança negra continuou escrava, como seus ancestrais, empunhando seu corpo – seu único valor – à mostra de uma suposta e histórica condição subalternizada, atualizada na vida encenada em desfile à sua cidade natal.

Conquanto felizmente naquela cidade ainda existam cidadãos e não somente foliões, talvez tenha faltado cuidado ou informação adequada para contar outra história, pelo menos naquele caso.

Nunca é tarde, contudo, para educadores, aqueles que aprendem sempre, com todas as experiências que vivenciam. Talvez seja esta a principal lição de qualquer escola a seus educadores, de que o seu ofício se exerce, em grande medida, sobretudo pelo aprendizado.

É uma pena, contudo, que aquela não tenha sido apenas uma encenação ingênua ou descabida sobre a condição escrava dos inúmeros africanos ao chegarem à colônia.

É uma lástima pensar que ela revela de fato o que há de real em nossos carnavais, tão quanto real quanto o foi em nossa Independência... e ainda hoje persiste real.

Publicado no Jornal AQUI, Pedro Leopoldo, setembro de 2006.

Júnia Sales
Enviado por Júnia Sales em 10/11/2007
Reeditado em 10/11/2007
Código do texto: T731737
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