GENIVAL LACERDA E OS DULCÍSSIMOS OLHOS TRISTES DE D. MAGNÓLIA

Da primeira casa onde morei lembro que ficava no alto de uma rua, era de esquina e tinha três árvores: um sabugueiro, uma mangueira e uma goiabeira que nunca deu frutos. Quando tive hepatite, com cinco anos, fiquei vários dias preso à cama, deitado, sem poder me levantar. Daqueles dias terríveis, lembro dos banhos e chás feitos com picão, a comida adocicada (feijão doce foi a pior iguaria que comi em toda a minha vida), e dos doces que a minha mãe me comprava, orientada por uma legião de especialistas, desde o seu Paulo, farmacêutico, até a D. Rosa, D. Irma e D. Basília. Dona Pedra não, pois minha mãe pouco falava com ela, até hoje não sei quais as razões.

Foi dali daquele quintal que em 29 de maio de 1975, dia em que nasceu o meu irmão caçula, vi várias viaturas do corpo de bombeiros contornando a “estrada do rio”, indo em direção da estação de Guaianases. Logo alguém que subia a enorme ladeira de terra batida, deu a informação que a vila toda queria saber: um caminhão sem freio tinha descido a rua da Telesp e entrado com tudo na estação de trem. Resultado: além dos feridos, 9 pessoas e 2 gatos, todos mortos.

Uns tempos depois, minha mãe, que convencia fácil meu pai a seguir seu nomadismo em busca de “morar em lugares melhores”, comprou o terreno ao lado, que era um pouco maior onde morávamos. Mas não tinha árvores. Lá ela construiu um barraco e, para comprar outro terreno contíguo com este segundo, e que dava na avenida principal (seu sonho de consumo), vendeu a primeira.

Quem comprou a casa da esquina foi o seu Geraldo, que era motorista da Samar, falava alto e gesticulando muito e desfilava todo garboso com seu uniforme, uma gravata escura sobre a camisa alva, calça de tergal passada milimetricamente e sapatos e meias pretas. Ele sempre estava viajando, mas em casa, gostava de colocar as caixas de som no quintal e ouvir música alta. Foi por ele que ouvi Severina Xique-Xique pela primeira vez. Nunca mais esqueci daquela música melosa, quente, grudenta, até porque minha mãe (crente e sisuda), se lamentava muito por ter vendido a casa para “um homem safado que vivia ouvindo essas músicas indecentes”. Nem parece que é casado, asseverava ela. Devia respeitar mais a sua senhora, a dona Magnólia, esbravejava por fim.

A D. Magnólia, tal qual a flor que lhe empresta o nome, era o contrário do marido em tudo. Simples, silenciosa, quieta, tímida, reunia todos os predicados elogiosos que as vizinhas podiam ofertar. Dona de uns olhos claros (hoje não sei se azuis ou verdes), sei que estavam sempre úmidos. Eu nunca soube quais as dores ou mistérios faziam com que olhos tão cristalinos ganhassem contornos de magenta e mesmo a encontrando décadas depois, envelhecida e curvada sob o peso da idade, continuava com os mesmos tristes, tímidos e dulcíssimos olhos.

Saber da morte prematura de Genival Lacerda (prematura sim, apesar dos 89 anos, pois o coronavírus – assim como todas as fatalidades e acidentes – abrevia vidas “fora do combinado”), abriu uma tampa aqui na memória de minhas infâncias.

E se é verdade que as músicas ouvidas nesse período entre a infância e a juventude nunca serão sobrepujadas na afetividade das lembranças, hoje uma prova fugaz dessa assertiva espocou aqui dentro. E se depois esqueci Genival Lacerda, assim como a d. Magnólia, estava num arquivo morto aqui, esta nota fúnebre reconstruiu todo um castelo escondido nas névoas do tempo há quase cinquenta anos. A notícia da morte de um ressuscitou ambos em algum lugar de minhas sensações.