Paulo, por que gente de esquerda com Dinheiro?

Paulo, por que tem gente de esquerda com Dinheiro? Pergunta meu querido amigo meio desemxabido enquanto andávamos. Assim, uma pergunta feita do nada, enquanto olhávamos as pessoas sem termos nenhum assunto em especial. Eu olhei para ele, sem nenhuma duvida aparente em meio rosto, cocei a barba, parei, nós paramos. Peguei em seus ombros com um sorriso e lhe disse:

-Pedro meu velho, eu acho que sei o porquê mas vou lhe explicar contando um caso de um outro amigo meu.

-Contanto que faça sentido e não demore até o uber chegar, eu te ouço.

João é um cara com muito dinheiro. Compreende? Assim... o que os americanos chamariam de um verdadeiro capitalista. Mas ele não começou assim. Antes disso ele era filho de um médico e uma médica e vivia feliz numa daquelas coberturas em um daqueles bairros caríssimos, afastado dos centros das periferias e morros. Imagino eu, que a primeira vez que João visitou um morro foi por minha culpa, mas isso se der, eu conto mais adiante. Pois muito bem, enquanto apenas filho de uma familia de classe média, ele aproveitava a situação. Usava os carros, ora da mãe, ora do pai; viva em baladas, cheirava muita droga, sempre cercado por belas mulheres e vários amigos, ao menos, enquanto estava nas festas.

Mas a família dele, de gente importante da cidade, queria que ele se formasse em alguma coisa. Como os pais médicos, era óbvio que ele não teria outra escolha que não ser um médico. Mesmo tendo estudado nas melhores escolas do estado, a gente não podia dizer que Joãozinho -- o apelido que dona Jurema e seu Clécio, os pais do João chamavam ele sempre que nós íamos visita-lo em prédio nos tempos da faculdade -- não era uma coisa assim que pudéssemos chamar de inteligente. A situação era meio trágica, porque uma pessoa que viajara boa parte do mundo, e não entedia nada de inglês, de repente tinha de se formar em medicina. Nos contou ele na faculdade, que papai e mamãe, forçaram-no a estudar o bastante. E no fim, talvez com a ajuda dos céus, ou do inferno, ele passou no curso.

-Sim, eu me lembro do João. Lembro que ele vivia no DCA. Ele chegou a se formar?

Isso não vem muito ao caso. Na faculdade, ele conheceu gente diferente e distinta daquelas dos bairros mais abastados. Sempre no curso tem aquele "cara" ou aquela "mina" que chegou lá com muito esforço e obstinação, e mesmo que o curso seja "de graça", tem que trabalhar muito fora dele, para pagar os custos da faculdade. E foi lá, que João com esse primeiro contato com pessoas que "pegam ônibus", começou a se sentir... culpado. Talvez culpado não seja bem a palavra, mas começou a sentir de verdade o que mais tarde ele veio a chamar muito de "desigualdade social".

-Você vai contar a vida dele inteira?

Não... eu vou adiantar um pouco. Como você sabe, indignado com a situação social do país, dos educandos que não tinham escola e com os proletários que nunca nem ao menos tiveram contanto com a disneylandia, João percebeu que a única forma de acabar com essa situação de uma vez por todas, era, obviamente, que se tomasse o Estado, para que ele resolvesse esse problema. Era um problema de classes, uma disputa de classes, e somente com o poder nas mãos de quem realmente sabe o que é melhor para as massas, é que poderia se acabar de vez com a desigualdade. Interessantemente, você sabe bem, João largou o curso -- sim, eu me lembro -- e foi direto para outra área. Não me recordo bem agora. Mas mesmo sendo um rapaz um pouco ineficiente nas notas, ele encarou os livros, estudou e como você bem deve lembrar, hoje dá aula na faculdade.

-Doutor em?... Quem diria. Eu não sabia que "Dr. João" era burro.

-Foi a mãe dele, dona Jurema, que me falou.

Mas só o estudo e formação de alto grau não bastam para viver. Papai e mamãe admoestaram-no bastante para que ele conseguisse outra forma de viver. E qual forma melhor, que senão através da geração e acumulo de capital que ele tanto combatera e ainda luta contra, na faculdade? João pegou tudo o que tinha, investiu na bolsa e hoje você sabe.

-É um filho da puta.

...hoje ele é um grande investidor, professor também, mas combate o capital, daquilo que ele sobreexiste e vive com, com o mesmo fervor de quando ele descobriu que pessoas precisam pegar ônibus e não sabem o que é a disneylândia. Calma Pedro, eu vou explicar. Não precisa fazer essa cara de que comeu e não gostou. Para João, a única forma de resolver o problema serísssimo da "desigualdade social", é como ele mesmo descobriu, tomando o Estado. É o Estado que tem de resolver o problema da fome, do emprego, da cultura, do ensino. Não é um problema dele. Ele não tem culpa que desde aos cinco aninhos ele teve contato com outros países e as outras pessoas não tem. A culpa é da classe abastada, como um todo, que suga o mais valia do trabalhador. E a única forma de acabar com esse problema, é a partir do Estado. Não dele.

-Humm... ele te falou isso?

-Ele nunca falou que o problema não era dele, mas como ele vive dizendo que é um problema da luta de classes e que somente com a tomada do Estado que se pode resolver isso, eu só juntei a o termo médio das premissas e cheguei à conclusão. Sabe, não é muito difícil. O ser humano como você bem sabe é incoerente mas possui razões em si mesmo que sustentem a sua realidade.

-Lá vem esse papo de novo...

-Para resumir, no caso de João, as premissas parecem ser muito aparentes...

-Para de filosofar...

-Então Pedrão, o problema da desigualdade não é do João, na cabeça do João; o problema é das classes. E a única forma para o João de fazer com que todo mundo vá para Disney, é a partir da tomada de poder do Estado. Só o Estado pode salvar o homem, dele mesmo, na cabeça do João.

-Humm... ele faz alguma doação para orfanatos, santas casas, lar de idosos a partir do amontado de capital e mais valia que ele possui?

-Olha... ele me falou que faz doações para ONGs políticas de vez em quando, para mudar o espírito absoluto da sociedade.

-Claro, porque o problema de fato é a política, né?

-Para João, sim.

-O que você acha disso tudo?

-Como bom amante das teorias de Freud, creio que João assim como parte das pessoas que creem nessas crenças mas possui em contrapartida, muito do capital que ele mesmo considera que os capitalistas usurpam do trabalhador, sublima. Ele sublima o problema, e culpa os outros. É a única forma de resolver essa culpa sublimada, ou seja, de se concluir que ele não é o culpado. Não vai ser ele que vai resolver isso. Os culpados são a classe como um todo. A culpa é do sistema capitalista, não dele que faz parte do sistema. A culpa é de tudo, menos dele. E a partir da sublimação para não se sentir um culpado abastado, ele chega à conclusão que a única forma, fora dele de resolver a situação, é a partir do Estado, que vai de forma justa, socializar todos os bens de capital. E no fim o capital, que é o verdadeiro mal, vai deixar de existir.

-João não pensa que vai ficar sem poder ir na Disney?

-Se ele fizer parte da revolução, de forma alguma! Claro que ele vai continuar indo. Porque ele será um dos escolhidos, como já é, para guiar as massas até o destino final do sujeito histórico!

-Muito sabido esse João.