O SHOW NÃO PODE MORRER

Se alguém escrever o meu perfil, ou o Marcelo Tass me perguntar:

- O que é a vida?

-A vida é movimento! Respondo.

Não tenho dúvidas, para mim a vida, antes de mais nada, é movimento em todos os sentidos e direções, reais ou imaginárias. Físicas ou mentais.

Sendo assim, não perco tempo, caminho diariamente. É muito bom caminhar, pois além do exercício físico, faço um trabalho mental magnífico. Vou andando e contando histórias reais ou inventadas, acontecidas ou por acontecer. Quando vejo passou-se algum tempo e eu estou longe de casa e é hora de voltar.

Aprecio caminhar. Tenho procurado fazer isso diariamente com duração de pelo menos uma hora e tem me proporcionado belos momentos, as vezes boas surpresas, coisas diferentes ou que, d’outra forma, passariam desapercebidas pela velocidade dos dias e da rotina.

Dia desse topei com prédios novos, calçada e rua modificadas. Constatei um piso novo no passeio. O tal do piso táctil, que agora estão usando, para orientar deficientes visuais. Tentei simular fechando os olhos e tateando com os pés as rugosidades e orientações diferentes. Tive dificuldades, tropecei arrastando os pés quase cai. Certamente alguém me viu e deve ter achado ridículo meu desajeitado modo de caminhar desequilibrado. Não estou nem aí, já tenho idade para não ligar.

Quando estava me concentrando para caminhar como um cego, ouço alguém cantando, soltando a voz, no outro lado da rua. Atravessei e fui até a grade e fiquei olhando.

Era uma mulher idosa, que sem pejo soltava a voz cantando um bolero mexicano rasgado. Daqueles de explodir o coração de tanto sofrimento. De paixão. Constatei que trata-se de uma casa de repouso, e, no jardim, sentado num banco um idoso ouvia e se deliciava prestando atenção no show da artista idosa. Esta abria o peito e cantava, dançando alegremente em volta do banco à sombra de uma mangueira. Ora se apoiando no encosto do banco, ora colocando a mão no ombro do senhor de idade. Sempre girando. Na cabeça um lenço e segurando o vestido dava seu recado.

Vi um pouco mais ao lado, a cuidadora, devia ser, concluí, estava de olho no casal e notou que parei para apreciar.

- Bom dia senhora, falei.

-Bom dia.

- Que espetáculo!

- Ela é deficiente visual.

- Ah é! Respondi não contendo a expressão de surpresa.

E o show continuava e eu ouvindo embasbacado.

- Canta bem. Solta a voz sem medo, falei.

- Sim. Sempre faz isso quando estão bem, falou a cuidadora.

- E ele presta atenção e gosta muito.

- Claro, ela respondeu.

- Então ela é cega? Perguntei para confirmar.

- Sim. Ela não enxerga. E ele é surdo!

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