Não é fácil

Em 30 de dezembro de 1976 morria, aos 32 anos, Ângela Diniz. Seu assassino, Raul Fernando Amaral Street, foi amparado pela defesa com o argumento de que matara para proteger sua honra. Em 12 de março de 2021, 45 anos depois, o STF decidiu por unanimidade que a tese de legítima defesa da honra é inconstitucional. Parece tarde, não é mesmo?

Entretanto, não estou aqui para julgar o fato de demorarmos 45 anos para decidir sobre algo que parece tão absurdo quanto a possibilidade de tirar a vida de alguém para defender sua honra, tampouco estou aqui para comemorar. Estou aqui para refletir sobre algo que ouvi minha esposa dizer: “Não está sendo fácil ser mulher no Brasil essa semana”.

De fato, ainda que eu tenha absoluta certeza que nunca foi fácil ser mulher no Brasil, ou em qualquer lugar do mundo, esta semana, sem dúvida, vem sendo bastante difícil.

Eu até entendo o argumento dela. Ora, esta semana o presidente Jair Bolsonaro decidiu vetar uma lei importante que o congresso (aliás uma das poucas coisas importantes que o congresso costuma votar ultimamente) decidiu aprovar que custearia absorventes para mulheres em extrema pobreza e situação de rua. Algo que já deveria existir, infelizmente, não parece ser muito importante aos olhos do presidente.

Além disso, temos um julgamento sobre um caso em que 14 mulheres relataram serem importunadas sexualmente no qual o suspeito responde em liberdade, mas, ao mesmo tempo, uma mãe rouba uma coca-cola e um macarrão instantâneo para alimentar, nem que seja um pouco, seus 5 filhos, teve seu pedido de liberdade negado.

Você poderia colocar a seguinte questão: “Certamente é algo relacionado ao financeiro, visto que somos um país desigual.” Não meu caro. Por mais que eu concorde, essa é mais uma prova de que minha mulher tem razão, não é fácil ser mulher no Brasil. Isso porque claramente vivemos uma política de violência de gênero que privilegia os homens e agride as mulheres. E quem escreve isso é um homem, mas pode ser facilmente notado em nossa sociedade.

Outro exemplo significativo que tem me motivado a voltar a escrever é um crime bárbaro que aconteceu no Brasil recentemente: Uma criança é morta, o principal suspeito é o padrasto e, ao que tudo indica, a mãe foi cúmplice. Uma barbaridade. Entretanto, numa dessas bizarrices que observamos por aqui, há um argumento que começa a aparecer na tese da defesa do padrasto e, no que depender da nossa sociedade, vai ser corroborado pelo público: A mãe, uma pessoal horrível, inescrupulosa, sem caráter, não sofria violência alguma do seu marido. Ela era má e pronto.

Que ela era má eu concordo plenamente, afinal de contas, na natureza o instinto materno sempre fala mais alto. Jamais uma leoa deixaria seu filhote ser morto sem lutar. Jamais um animal que é atacado por um predador deixaria seu filhote para trás sem lutar. Mas essa deixou.

Então, por que questionar? Ora, porque o principal argumento de que ela era ruim não exclui jamais que ela não sofresse em um relacionamento tóxico. Alguns comentários por aí, de pessoas comuns, que vivem uma vida comum, são pontuados por uma certeza absoluta: Ela estava interessada no dinheiro! Veja só, uma mulher cruel, inescrupulosa e sem limites.

Há nesse argumento algo que evidencia o quanto somos pouco entendidos sobre o que significa violência contra a mulher no Brasil. Mas, para deixar mais claro, a violência não é só física. Ela é moral, financeira, psicológica, entre outras. Quando a defesa do caso tenta jogar para o público que não houve violência praticada contra ela, abre-se um precedente que pensava estar aos poucos sendo superado.

Não se pode jamais excluir uma mulher de ter participado de um crime se há provas sobre isso. Entretanto, não podemos cair na lorota de que há mulheres interesseiras que fazem com que homens sejam capazes de coisas absurdas como matar uma criança. Se cairmos nisso, voltaremos à década de 60, ao caso de ngela Diniz. Se nos darmos ao luxo de construirmos essa narrativa, vamos sempre manter uma caça às bruxas na nossa sociedade. Lembre-se, um homem que esbraveja tem um temperamento difícil, uma mulher que esbraveja é louca, descontrolada.

Ainda estamos muito longe de superarmos todos nossos problemas, esse, então, está longe de superarmos. Existe chance do tal “Doutor” ser absolvido: Muito pouco. Mas, que já se construiu a narrativa perfeita para nossa sociedade, isso sem dúvidas. A história está muito mais bonita assim, uma Nazaré Tedesco da vida real, “uma crápula, cretina e ambiciosa que fez de tudo para acabar com a pobre criatura, isso mesmo, o marido. O homem. A criança, ah sim, a criança, nossa, que horrível”. É, não está fácil ser mulher no Brasil, sem dúvidas.