Até daqui a pouco, dona Olga!

Muito me chamou a atenção aquela senhorinha sorridente nas aulas de Tai chi chuan. Era a única pessoa de idade já avançada presente naquele curso da milenar arte marcial chinesa. O restante da turma era composta por pessoas como eu: recém aposentadas , com um gigantesco cansaço acumulado nas costas. Todas tentando se reanimar, se afastar conscientemente de tantas responsabilidades reunidas ao longo do histórico profissional, descobrir novos espaços, aprender mais, se cuidar depois de tantos sobressaltos (e também conquistas e alegrias) e, finalmente, se sentir viva para... viver.

Como é meu costume, fui cumprimentá-la e já me afeiçoei àquela pessoa de tantas histórias certamente interessantes. Sempre os idosos me atraíram. Uns, bibliotecas ambulantes; outros, pessoas de saberes acumulados pela própria existência, pelo conjunto de alegrias e de dores. Os tristes que me perdoem. Tenho compaixão, tento a compreensão, ouvi-los e mantendo alguma proximidade.

Mas a dona Olga me chamou a atenção pela simplicidade e sorriso bom. Ela fazia questão de ir às aulas bem arrumadinha e com notável bom humor. Vivia sozinha no apartamento defronte à Fundação Cultural. Era só atravessar a rua e lá ia ela rumo a um encontro especial.

Logo nos tornamos amigas. Uma senhorinha com mais de três décadas de existência que eu! Um privilégio, uma novidade ímpar para mim. Tratei de aproveitar a conquista de coração inteiro.

Com o passar do tempo, a capacidade visual da Olguinha foi se deteriorando, ficando cada vez mais prejudicada e passamos a ir buscá-la para as aulas e a levá-la de volta para casa. Uma outra amiga, a Tânia, muito pontual na sua assistência, não deixava a dona Olga só. De braços dados, ia a Tânia, a Rita ou eu acompanhando a linda figura esguia, elegante, de cabelos brancos de volta ao seu silencioso recanto.

Passou o tempo e... veio o nefasto golpe. E aí, claro, contenção de despesas, o total desprezo a todas as formas de conhecimento, o rebaixamento ainda maior da categoria de professor. O curso foi extinto, afinal, cultura cá embaixo do Equador, sabe como é, né??? Mas me abstenho de comentar sobre. É pérfido demais para o agora!

Foi então que a Olguinha nos convidou para praticar o exercício na sua casa. Aceitamos prontamente. Com dia e hora marcados lá fomos nós. A cada dia arrastávamos as poltronas da sala e, ali mesmo, com uma musiquinha chinesa, nos púnhamos a realizar os exercícios tentando ao máximo seguir as antigas orientações dos mestres.

E fomos vivendo, dando jeito na ausência do verdadeiro professor, nos ajudando a não perder o gosto de lutar contra o possível Alzheimer. Sim, a prática do Tai chi chuan é extremamente salutar para o equilíbrio físico e mental, afastando possíveis males que atormentam as pessoas de mais tempo de história de vida.

E mesmo se não fosse para praticar a tradicional arte marcial, eu ia visitá-la. Um dia levava sorvete caseiro, no outro, levava um pedaço de bolo. E resolvemos jogar canastra na mesa da sala. Foi com ela que aprendi a tomar sorvete acompanhado de gelatina. Uma delícia!

E conversávamos. E ela perguntava muito do meu filho, que ora trabalha e estuda no Paraná. E contava coisas engraçadas dos tempos que ia dançar no carnaval. “Naquele tempo não acontecia nada. A gente dançava, voltava prá casa e pronto”. E contava que fugia dos namorados para não se casar. Muitas estripulias que jamais a Olguinha se esqueceu.E como se ria! E tomávamos café juntas! E algumas vezes chorou e se revoltou por não enxergar mais!

Veio a pandemia e tivemos que deixar de visitá-la.

Eu telefonava com frequência e falava com a cuidadora. A dona Olga estava compreendendo a gravidade da doença e também pedi para que entendesse que não havia sido abandonada, mas que, simplesmente, não podíamos mais sair de casa.

A Olguinha compreendeu que o mundo estava dando voltas e que não tinha sido esquecida.

Com todos os cuidados necessários, os medicamentos para sua eterna anemia ...a dona Olga se foi. A nossa querida amiga partiu. Estava muito ruim, não reconhecia mais as cuidadoras, não contava mais as suas estórias hilariantes para ninguém. Seu sorriso foi ficando no escuro. Fiquei sabendo: ela partiu com a COVID. Deve ter pego o vírus por alguma eventual visita.

Hoje faz um ano.

Que a sua falta nos pertença, Olguinha. Que fique cravada na nossa memória a sua presença macia, às vezes brava, mas pontual, sábia e serena.

Fique na paz, querida amiga.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 30/10/2021
Código do texto: T7374741
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