A fenda maldita

O ano de 2019 aprontava as malas para se despedir, quando surgiu no oriente avassaladora força trevosa - possivelmente escapara por alguma fissura na crosta, que fazia ligação direta com o inferno - e se alastrou por todo o orbe, com a celeridade do fogo em rastro de pólvora.

A invisibilidade da besta tornara o mau mais poderoso e daninho.

O medo assumira o trono do mundo, subjugando de forma surpreendente todas as nações.

Os gráficos jornalísticos assombravam cotidianamente a população, com o crescente e irrefreável número de mortos.

Hospitais abarrotados, intensos e ininterruptos atendimentos, equipes médicas exaustas... Saúde colapsada.

Em momento algum os cientistas esmoreceram com a árdua missão que lhes cabia: criar vacina que cessasse ou reduzisse a aterradora marcha de óbitos.

Confinamento! Eis a ordem mundial.

Assombroso silêncio se instalou nos centros comerciais e financeiros das metrópoles. O setor econômico; coração que promove a vitalidade das cidades, havia enfartado. O planeta encontrava-se em preocupante estado cataléptico.

Se por um lado o isolamento social reduzia o contágio, por outro, gerava sérios danos de ordem psicossomática: Neuroses, depressões, ansiedades, pânicos...

Com a falência de inúmeras empresas, a taxa do desemprego - que já era elevada - aumentara absurdamente, obrigando as pessoas a se submeterem a qualquer atividade que lhes garantisse a subsistência. O caos fincava raízes em diversas sociedades. As mais frágeis sofriam com rapidez e severidade, os golpes desferidos pela da pandemia.

Na medida em que a miserabilidade se expandia, os desvalidos passavam a se banquetear nos lixos.

As fileiras da fraternidade e da compaixão se mobilizaram, criaram poderosa organização de solidariedade, como nunca antes vista. Nações se uniram, CNPJs e CPFs deram as mãos e formaram providencial argamassa, com a qual se construiu robusta ponte de camaradagem. O planeta agora sentia o sabor e o valor de um amoroso abraço.

Hoje, no tablado da existência, as cortinas de 2021 se preparam para fechar. Não foi e nem poderia ser boa apresentação, já que a humanidade, ainda cambaleante, tenta se reerguer dos sopapos aplicados pelo intangível verdugo.

A ciência alcançou seu objetivo, afugentou a besta para o mesmo buraco de onde jamais deveria ter saído, mas a nefasta psicosfera que envolvera a terra ainda não se dissipara por completo.

A tormenta trouxe ausências, dores e tristezas, mas também nos revelou muitos ensinamentos. Ela nos reafirmou que a “dor” ainda é a forma mais eficiente de nos despojarmos do orgulho, da vaidade, da arrogância, do egoísmo..., e que através de suas esporas, conseguimos seguir e mostrar o nosso melhor.

A fome, que desde tempos remotos senhoreia vultosa legião de miseráveis - irmãos nossos que perambulam pelo palco da vida, cobertos pelo manto da invisibilidade social - recebia agora, com sorriso e braços abertos, expressiva quantidade de novatos.

Advinda da mesma fenda por onde o coronavírus escapara, ela ainda não bateu em retirada - como ele -, por conta do nosso arraigado egoísmo.

Sem melindre gente! Os fatos não devem ser maquiados. Possuímos muitas virtudes, mas também inúmeras mediocridades. Entre tantas que latejam com pujança em nosso imo, o egoísmo é sem dúvida alguma a mais ordinária. A boa noticia é que, em seu devido tempo, todas serão expurgadas. Para tanto, faz-se imperioso admiti-las e combatê-las.

Fome não é transmissível e isso basta para cruzamos os braços. Se houvesse real possibilidade de contagio, certamente faríamos grandes esforços para solucionar ou amenizar a dor do outro. Não pelo sublime ato de abrandar sua mazela, mas por medo de sermos atingidos pela mesma dor, sofrimento e angustia que o aflige.

Os cientistas conseguiram estancar o surto, mas a ciência é ineficiente quando se trata de compaixão e solidariedade. Os tubos de ensaio não são capazes de fazer as pessoas se colocarem na posição das outras.

Fome é uma antiga e “velada” pandemia, não contagiosa, mas tão letal quanto à atual.

Chegará o tempo em que, espontaneamente nos compadeceremos dos males alheios, da mesma forma que os outros se preocuparão com o nosso bem estar. Nesse dia teremos extirpado o egoísmo do nosso âmago, e não mais ouviremos seus recorrentes sussurros, quando estávamos diante de um faminto: “Deixa pra lá”, “alguém vai ajudá-lo”, “você já tem muitos problemas”...

A partir de hoje está decretado! A fome é contagiosa! Creiamos nisso gente! Desta forma aceleraremos o processo de camaradagem recíproca ao qual estamos fadados alcançar. Só assim nos livraremos desse “vírus”, que se instala no estômago, mas que é facilmente reconhecido nos olhos do infectado.