Imagem:Arnaldo Silva — Estação de Martins Guimarães, distrito de Lagoa da Prata.

 

 

 

_____________O APITO DO TREM

 

 

O que faz o apito de um trem? Faz muita coisa, inclusive, nos arrebatar pelo indelével túnel do tempo. Dia destes, voltei ao pequeno distrito onde nasci. Parada próximo à ponte, antes da antiga estação, ouvi o apito: um trem vinha chegando. Em pouco, a máquina despontou na curva e invadiu o vilarejo. Foi quase um abalo sísmico: em segundos, me vi sentada à janela. Pelas minhas retinas passavam cerrados, gente escorada ao cabo da enxada, gado pastando, vales e montes — tudo ao balanço da trilha sonora de um moroso café com pão. Não demorou, a portinha do vagão se abriu e uma lufada de vento frio deu passagem ao cobrador, que vinha picotar os bilhetes. Ostentando um  quepe, em seu impecável uniforme, o homem respirava a respeitabilidade da RFSA. Vai ser chique e solene assim lá na China! Um passageiro ao meu lado perguntou as horas. A insígnia personalizada da Rede Ferroviária Brasileira sacou do bolso um relógio redondo, pendente de uma corrente dourada, e respondeu gentilmente, com precisão quase britânica:

 — São treze horas, dois  quartos e cinco segundos — como esquecer uma coisa destas? Jamais!

Sim, é um filme na cabeça, passagens de uma vida, mas que numa absoluta covardia não me inclui no próximo take. Arrastando sua infinita composição, a máquina seguiu viagem. Sentado num dormente sobre a linha de ferro, o passado pediu licença e enxugou uma lágrima furtiva.

 

 

 

Tema da Semana: Foi um filme que passou em minha vida.