Refém da "modernidade"

Meu computador tem mais de um ano. Não vou dizer que tem mais de dois, senão meus amigos de TI vão dizer que está obsoleto. Isso é, vão dizer: ”Troca essa velharia!”. Será que é velho quem não acompanha as ditas modernidades?

Há um mês, tive a carteira e o celular furtados – no meio do Carnaval. Graças à modernidade, cancelei o cartão rapidinho. Quer dizer, voltei pra casa rapidinho e liguei do telefone fixo pra cancelar meus cartões – ai de mim se não fosse essa tranqueira velha! Fiz o BO pela Delegacia On-line, que graças a Deus existe, pelo comodismo e porque não precisei ouvir de delegado a conversa que intui:

– Mas a senhora levou carteira e celular pro meio da muvuca??!

– Precisava comprar umas coisas antes de chegar lá, e precisava do celular pra fazer as fotos e chamar o Uber...

– Precisa se atualizar, ficar esperta, não pode dar bobeira não... Tem de deixar TUDO em casa!

É. É sair direto de casa, de carona, só com a roupa do corpo – bem vagabunda por sinal, senão vão querer roubar também... E o dono do carro que vai dar a carona? Ah, aí é outro assunto...

Ok. A própria DOL se incumbiu de bloquear o celular se eu passasse o IMEI. Como celular era zero bala e eu tenho o costume de guardar as NF por um tempo, foi fácil achar. Difícil foi ter acesso a um dinheirinho... Como sacar sem o cartão? Como transferir dinheiro para outra conta se para isso a internet banking usa nosso celular para enviar os códigos de acesso? Pois é, nessa, nem eu nem os ladrões tivemos sorte. Tive de esperar o fim do fim de semana, ir à agência, a pé mesmo (sem celular para chamar uber nem dinheiro para outro meio de transporte...), e conseguir um cartão provisório.

Foi então que ouvi da gerente:

– Se você tivesse se modernizado como te falei, usando o aplicativo no celular, não passaria esse sufoco. Dava pra você comprar, transferir pelo apl...

– Moça, levaram o celular.

– Ah, é! De qualquer forma, você precisa se modernizar.

Certo. Então, essa semana, não porque eu quisesse, baixei o aplicativo. Era baixar ou não ter acesso ao banco on-line.

– E se eu não tiver celular?

– Quem não tem celular hoje em dia??!

– Quem foi roubado; quem tem, mas ele está no conserto; quem tem, mas ele está sem carga; quem tem mas não está a fim de usá-lo pra acessar sua conta corrente!

Bom, nenhum desses tem direito: ao tentar acessar sua conta em computador, você precisa de um celular para destravar os QRcodes e, finalmente...! Não. A cada transação você precisa novamente direcionar seu celular para tela e inserir uma nova senha...

Realmente, tenho muita inveja dos bandidos da atualidade, pois, com tanta tecnologia contra possíveis desfalques, eles só podem ser ultragênios.

Lembra um quadro do jurássico programa TV Pirata em que um casal chegava de carro ao cinema; então, o homem dizia à namorada para ir entrando enquanto ele “arrumava” o carro: tirava o cachimbo do motor, colocava trava, correntes, cadeados... Quando ele está quase terminando, ela volta e diz: “Vamos, amor, eu te conto como foi o filme.”. Jurássico, mas atual. Quer dizer, quase: quem ainda vai ao cinema?

Somos bombardeados para nos atualizar (em matéria de tecnologia, é preciso aceitar que é impossível: é viver ou se atualizar!). Muitas vezes temos de adotar um comportamento que não queremos, como consumir produtos e aplicativos dos quais não precisamos, mas sem eles todo o resto trava... E com essa modernização, muitas vezes, perdemos tempo, perdemos objetos e, pior, produzimos montanhas de lixo... Enquanto outros enriquecem com o que nos fazem crer que precisamos consumir, adquirir.

O caminho do meio é só adotar o que nos é imposto quando realmente for necessário, quando não houver outra saída. Se eu ligasse para o julgamento alheio, não teria esse maravilhoso computador que transforma pensamento em texto, não teria mais meu telefone fixo que ainda foi tão útil, não teria mais memória, só porque lembrar de algo que é bom foi classificado como “jurássico”...

Sal Maciel
Enviado por Sal Maciel em 19/11/2021
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