A BODEGA DE DONA TUTA

A BODEGA DE DONA TUTA

Elas estão ali.A quadra convergente com a esquina onde moro está tomada de areia...Montanhas de areia que se vão movendo diariamente ao ruído ensurdecedor das pás carregadeiras

alimentando carretas aos seus destinos.

Os montes de pedra e areia sufocaram histórias naquela quadra.

Eu nem imaginava que um dia viria morar aqui, apesar de nutrir um carinho imenso por este meu novo endereço.Sempre que cruzava o trecho, permitia-me revisitar os velhos tempos de mim quando avistava-se ao longe a fileira de casas na Rua Rio de Janeiro,com seus quintais e jardins, a ferraria num casarão de madeira e as carroças reformadas à espera de seus proprietários.A quadra que havia, então, sido despida de sua primeira história , abrigava agora um campinho de futebol e os arbustos onde Seo "Bigode" amarrava os burros no pasto. Restava ainda um amplo espaço verde em que - invariavelmente -algum circo se instalava.Foi num desses circos da vida que fui contemplado com vigorosa cusparada de uma lhama irritada – que certamente não fora com a minha cara – cuja fedentina persegue-me feito pesadelo à cada vez que me lembro.

Porém, muito antes de campinhos ou circos, a quadra acomodava uma bela história de um casal de comerciantes que guardo na memória.

Fecho os olhos e tudo me vem à cabeça feito um filme em preto e branco:

Então...

A pá de madeira besuntando as bordas do pote de alumínio numa branca camada de banha de porco.

Esguio e ligeiramente calvo,aquele senhor resguardava sob as grossas lentes dos óculos um atento par de olhos a moverem-se de um lado e outro,observando:ora o deslisar suave e compassado da pá sobre o pote,ora a mão que selecionava os pesos para o fiel da balança na medida exata que a freguesa pedira.

Depois, entre um cliente e outro, metia mão no bolso da calça retirando um relógio preso a um cordão dourado.

Cronometrava o tempo e um breve suspiro fluía de sua boca como que estivesse de missão cumprida.

A cliente, de nome Ortilizia, aguardava o baldinho de banha do outro lado do balcão.

Meiga, um tanto acanhada, vestia-se feito uma baiana.Alguns colares no pescoço, os cabelos presos numa peruca discreta, vestia-se com blusas rendadas e saias muito longas e franzidas.Sobre estas, um avental colorido contrastando com as cores de saias e blusas.

Seu andar era lerdo, macio, compassado...

Algo como quem desejava sorver intensamente a placidez que reinava naquela quase aldeia dos anos 50.

Um carreirinho entre as vassouras, e ei-la !

Feito alguém que iria encontrar a felicidade na primeira curva do caminho buscava a casinhola singela à beira de um riacho de águas claras onde morava.

Havia por ali, nas proximidades, um pontilhão que nos conduzia – a piazada de então – à mata recheada dos mais variados gorjeios e frutos silvestres.

Ao lado do atendente da bodega , protegida por uma espécie de guichê, a sempre bem trajada esposa anotava numa resma de papel o movimento da casa.

Sobre a sua mesa os olhares carrancudos dos índios fustigavam!

Enfileirados e presos às rotulagens dos conhecidos tinteiros "Guarani",por onde, mergulhadas , descansavam as penas de escrever.

Espalhados ainda, podiam-se avistar uma pedra achatada, em formato de batata - polida pelo manuseio - e a delicada mãozinha de metal com mola de arame pressionando a papelada que se ia avolumando.

Verdejava entre as duas portas largas, pendente num vaso de barro, um viçoso guiné atado em sua haste por um laço de tecido vermelho.

Nas laterais, tábuas maciças erguiam-se em rústicas banquetas e na parte superior da parede, dispostos entre algumas gravuras, a fileira de cabides esperava pacientemente pelos chapéus e demais acessórios da freguesia.

O tempo vagava sonolento naquela quadra, naquela esquina...E tal como o tempo,a freguesia ia aportando aos poucos. Haviam cinamomos a sombrear-lhes as montarias e o aconchego dos bodegueiros a lhes informar sobre os mais recentes acontecimentos da cidade.

O casarão cor de rosa esmaecido com janelas venezianas (das quais já falei em outra crônica) imperava entre os jardins de dálias e goivos.Caquiseiros delimitavam os espaços reservados à mais de uma dezena de casas de sua propriedade a render-lhes em aluguéis.A constante mudança de inquilinos conservava os ares festivos que imperavam naquela quadra.

Tudo de que me recordo é aquele estranho fascínio que habitava naquela venda.Algo lhe fazia diferente das demais.Reinava entre as paredes um disfarçado refinamento,um sedutor aconchego que costumava atrair os frequentadores.

[ Dentre estes, eu. Um fedelho fascinado ]

Fruto da delicadeza e atenção que o casal dispensava às pessoas, dos modos e gestos sempre carregados de sutileza que os tornava diferentes dos hábitos simples e turrões a que estávamos acostumados.

Guardo na lembrança minhas idas e vindas em busca das famosas “caixinhas de segredo” onde sonhava-se com algo diferente e o “segredo” revelava-se quase sempre na mesma coisa.

Hoje, da janela na casa onde moro, meus olhos já meio cansados, espiam incessante vai e vem de barulhentas pás carregadeiras e caminhões entre montanhas de areia e pedra.A fileira de casas da rua de baixo,desaparecera por trás dos montes.Chega a ser irritante o ruído do progresso de agora, porém, ainda que tomado de inquietante irritação, reservo-me um nostálgico silêncio e então vou retomando aos poucos debaixo daquelas montanhas, o casarão cor de rosa com venezianas brancas, bordado de dálias e goivos. Caquiseiros e cinamomos, a ferradura encravada entre as portas largas, Aurora, a filha , e os meninos brincando em frente à venda sob os olhares atenciosos dos pais. Ele, sempre sereno e justo, cronometrando o tempo em seu relógio de bolso.Ela , doce e meiga, feito a figura d e uma avó, exalando pelo ar resquícios de um perfume inesquecível que usava quando postava-se naquela mesa onde contabilizava, ao seu modo, o movimento da casa.

PS. Este texto foi escrito a mais de uma década.Hoje, da minha janela, a visão que me chega tem ares de modernidade naquela quadra que fora um dia tomada por montanhas de areia.

IRATIENSE THUTO TEIXEIRA
Enviado por IRATIENSE THUTO TEIXEIRA em 26/11/2021
Código do texto: T7394263
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