Uma noite de trovoada

Desde muito novo que tenho o vício do campismo, actividade onde acontecem as mais variadas e engraçadas peripécias.

Estávamos acampados na Galiza, algures num parque das Rias Baixas, eu a minha filha Joana e o Pedro, um amigo de longa data, também apaixonado pelas salutares escapadas da primavera e do verão.

Quando lá cheguei, já ele estava instalado, o sítio era bom, mas tinha um pequeno defeito, pois o sol batia nas tendas logo de manhã, o que nos obrigava a levantar relativamente cedo, se não quiséssemos uma sessão de sauna.

Lembro-me que a tenda do Pedro ficou do lado do meu quarto (eu tenho um T2 com sala ao meio) e sobrava bastante espaço exterior para estacionar os carros, as mesas, a corda da roupa, a louça, as cadeiras e o resto das coisas que um pouco desordenadamente vamos espalhando.

Depois de umas braçadas e outras tantas palhaçadas na piscina, uma cerveja e ala, de se faz tarde para ir às compras, um supermercado ao qual fomos a pé e que nos fez gastar mais algumas calorias. Só para abrir o apetite.

Para variar, escolhi como prato principal creoulas, uma espécie de salsichas frescas que todos gostamos. Deixei os acompanhamentos para a escolha do Pedro, que sem hesitar escolheu uns abonados frascos de grão-de-bico, praticamente prontos a comer.

- Oh Pedro, grão-de-bico com crioulas, tu não estás bom?

- Que é que queres, estou com vontade de comer grão. Lá em casa nunca como, só eu é que gosto. Preferes feijão?

- Não pá, o grão está bem – sem conseguir ver-me a comer feijão com as salsichas – vou escolher uma salada para as entradas.

Quando regressamos ao parque, estavam nas imediações das nossas tendas alguns casais jovens, com ar de quem procura alguma coisa. Como não os conhecíamos, não demos treta e começamos arrumar as compras; cerveja e vinho para a geleira, ao lado da fruta, dos iogurtes, os tomates e as alfaces por cima e por aí adiante.

-Vocês são portugueses? – Pergunta um dos parceiros, com forte pronúncia do Porto.

- Somos. E vocês de onde são?

- De Gondomar, chegamos agora e vimos as matrículas dos vossos carros. Podemos ficar aqui ao lado?

- Por nós podem, mas tem de dizer na recepção quais os lotes que vão ocupar.

Lá foram buscar os carros e começaram a montar os tarecos. Afinal eram bastantes e todos equipados com iglôs, mas daqueles pequeninos, onde só cabem duas ou três pessoas no máximo. Em breve formamos uma ilha portuguesa, em plena Rias Baixas galegas. Ao lado da minha tenda ficou uma senhora, uma quarentona viúva, com uma miúda de três ou quatro anos. Disse-me que era a avó da miúda e que tinha vindo com a filha e o genro. O facto da senhora ser viúva e ainda jeitosa, que não vos dê ideias…

O jantar acabou por ser um sucesso, mais devido à fome que nos atravessava em todas as direcções, do que à especialidade das iguarias servidas.

O Pedro começou a preparar a televisão que sempre o acompanha, sintonizando canais, esticando e rodando a antena, que comprou na loja do chinês em Caminha, por dez euros. A outra antena durou pouco, porque no acampamento anterior passou-lhe por cima com a roda do carro, durante uma manobra de estacionamento. Nunca tinha visto uma antena tão espalmada, só era pena não funcionar. É o perigo de se deixar as coisas espalhadas pelo chão.

Naquela noite ia dar futebol, provavelmente aqueles jogos de preparação ou pré-época, como lhe chamam, já não estou certo.

Os nossos vizinhos ficaram pasmados com tanta tecnologia e sofisticação. Televisão em cima da mesa, cadeiras a postos, nós à espera do grande jogo.

- Até tem televisão, carago! Também podemos ver o futebol, chefe?

- Claro, tragam cadeiras e acomodem-se – convida o Pedro.

Uns nas cadeiras, outros com o rabo alapado no chão, lá fomos conversando, molhando o bico, porque eles e elas não gostavam nada e vendo a televisão. Depois do futebol foram umas cartas, mais conversa, enfim, uma noite bem passada com gente simpática e amigos da borga.

Quando finalmente nos deitamos, eu nem me lembro de ter adormecido, que é o mesmo que dizer que adormeci de imediato. Às tantas da noite, acordei com uma sensação estranha. Um barulho esquisito que vinha dos meus pés. Certamente já aconteceu convosco, acordarem e terem dificuldade de raciocinar com clareza nos primeiros momentos. Aconteceu isso mesmo comigo. Um barulho surdo, forte e intermitente que vinha dos pés. Dos pés??? “Ora pôrra, só pode ser o Pedro a ressonar” pensei, quando finalmente identifiquei o responsável por aquele “rosnar”.

Do outro lado, algum dos nossos recentes amigos, respondia com uns roncos mais suaves, um ou dois tons mais abaixo. Um tom mais urbano, mais educado! Registei mentalmente que nunca mais colocaria a tenda, com o meu quarto virado para a tenda do Pedro e é verdade que procuro, desde essa data, evitar certas proximidades.

Lá consegui dormitar algo incomodado com a serenata que aqueles dois faziam e com um certo mal-estar provocado pelo jantar “ligeiro” que tinha ingerido e que me estava a causar alguns gases. E o ataque de flatulência estava em crescendo, primeiro era um de vez em quando, depois eram cada vez mais frequentes e já era dia alto, quando finalmente a “trovoada” deu mostras de amainar.

Horas de levantar, o calor já apertava, o barulho cá fora dizia-me que já quase toda a malta estava a bulir, saio do quarto, visto-me e enfio os chinelos, abro o fecho da tenda, dou de caras com a avó e a neta que também estão a sair da tenda delas.

Trocados os bons dias, a senhora afasta-se a rir à gargalhada, ficando eu atónito perante aquele comportamento. Passei a mão pelo cabelo, verifiquei que não tinha nada desapertado, as sapatilhas estavam direitas; que raio levou a mulher a olhar para mim e rir-se assim? Parece maluca! Alguma piada da neta, se calhar.

A Joana já tinha abalado para o banheiro, o Pedro tinha ido à loja do camping comprar o pão e os nossos vizinhos já estavam todos de volta do pequeno-almoço. Foi nessa altura que ouvi um deles comentar para os demais:

-Há aqui um tipo que ressona que se farta.

- Era mais que um, eram dois ou três.

- Afinal quem foi o gajo que se peidou durante toda a noite?

A quarentona recomeçou a rir-se e eu finalmente compreendi o porquê daquelas gargalhadas.

Achei que era oportuno sair dali, de fininho, ir dar uma volta, pelo menos até a trovoada amainar de vez.

Brito Ribeiro
Enviado por Brito Ribeiro em 17/11/2007
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