Bons tempos

Quando no cumprimento do seu expediente, após desmaiar atrás dos montes, o sol enxotáva-nos das ruas para nossas casas: sujos, fedidos, em frangalhos, pelo ardoroso e extenuante dia de diversão.

Quando fornalhoso verão induzia-nos refrescar o corpo com gélida e salobra água de poço, captada com cacimba ou quando súbta e torrencial chuva arrastavanos para o descampado, onde pudessemos ser alvejados por suas pesadas e intensas gotas, até que estivéssimos com corpo e vestes exarcadas.

Quando as pipas coloriam o céu diurno e balões iluminavam o firmamento noturno, como lamparinas flutuantes.

Quando as noturnas histórias assombrosas dos avós prendiam nossa atenção e o pavor retardava a liberação da melatonina.

Quando não sabíamos verificar as horas e não possuíamos carteira de dinheiro, já que ele não tinha improtância.

Quando o descompromisso era o único compromisso...

Até que, sorrateiramente sugiu a puberdade. Apartir desse momento as coisas sofreram significativas mudanças. Valores, conceitos e interesses ganharam nova versão, passaram por profundas reconfigurações e hoje encontramo-nos cerceados pelos ponteiros do relógio, ameaçados por boletos...

A chuva agora afugenta-nos para baixo de alguma cobertura, só nos atrevemos a sentí-la em nosso corpo se houver inadiável motivo para isso, e desde que remédios para gripe façam parte do nosso arsenal de medicamentos.

Pipas e balões perderam o glamour e ganharam status de crimes.

O descompromisso se diluiu no tempo.

Hoje quem dá as cartas é a ansiedade, a preocupação, a incerteza.

Bendita infância, cuja tecnologia era precária, mas o divertimento fazia o coração pulsar de forma intensa e alegre.