Fragmentos de um só dia

I.

Foi novamente às dezoito horas que o céu ficou todo chamuscado de fogo, pensei que fosse por causa do solstício, mas hoje me antecipei a ele e subi no telhado do meu corpo e, lá de cima, conversei com as chamas e também fiquei queimado. Foi o seu cheiro que clareou minha alma e percebi o mundo bem mais nítido que Alberto Caeiro que dizia ser o seu olhar mais nítido que um girassol.

Amo girassóis por também eles sentirem saudades do sol. Mas só gosto do sol na despedida e quando está abrindo os olhos, depois prefiro a chuva e os ventos frios do inverno. Gosto dos girassóis por causa da tristeza, da saudade contida e do seu apego ao chão, a terra.

II.

Os deuses da cultura grega também liam Dostoievski - mesmo russo já era universal - e concordaram com sua frase que dizia que a beleza salvará o mundo. Então, fomentados pela busca da beleza perfeitamente natural, os deuses consentiram entre si que plantariam novas espécies de ervas em seus respectivos lugares.

Assim foi feito.

Deus Hélios plantou uma sementinha rajada de branco e preto no sol e floresceu. Uma flor enorme da cor do sol despertou e todos os deuses a admiraram. Hélios a chamou "helianthus", que quer dizer flor do sol.

A deusa Gaia roia as unhas de inveja e roubou a flor do sol e a fez cativa na Terra. Porém, todas as vezes que "helianthus" floresce sente saudades do seu lugar de origem. Sente saudades do sol. Por isso que aqui "helianthus" é conhecida por girassol, cujo sentimento lhe faz, todos os dias, acompanhar o percurso do sol. Desde seu nascimento até o seu ocaso.

III.

Gosto também da iluminação das velas. Bruxuleante. Misteriosa e sacra. Perto da chama de uma vela falo mais baixo e me entrego aos devaneios do amor erótico, como Bachelard: “Se nos inflamamos quando amamos, isso prova que amamos quando nos inflamamos”.

É preciso arder para que o amor haja e nós sabemos disso.

É preciso ter lenha ou gás GLP, mesmo.

Às vezes é preciso ser vaga-lume e iluminar de revés para não morrer queimado.

IV.

Quando eu subi no telhado do meu corpo para conversar com as chamas do céu eu já estava envenenado de sol, por que também o sol estava morrendo, mas viverá novamente amanhã e morrerá amanhã e viverá depois e morrerá depois, até... Estava envenenado sem desejo de cura, sem a lapidação dos sentidos. Queria sentir-me bruto. Natural e como realmente é e fiquei lá, como uma parede velha com musgos nos pés, estático e cheio de vida.

Fui batizado no fogo quando me converti às palavras quentes. Abrasaram-me. E, quando desci de mim, já não era mais eu, mas um ser iluminado de sol me inventava.

Foi aí que você me viu.

Me viu diferente. Eu te toquei e você ficou queimada de pôr-do-sol. Impregnada do perfume escuro de suas chamas no céu. Nós dois iluminávamos de revés como vaga-lumes e andamos para frente.

V.

Ainda carrego a pele cortada e o sangue escorre negro dos meus ossos, até que toda impureza desvaneça do meu corpo. Se o tenho chamuscado de fogo do céu e se, junto dela, iluminamos como vaga-lume, como está impregnado de sangue os meus ossos? Como permanecer em mim tal sangue? Mas escorre e, ela e eu, já iluminamos. Deixa correr então, que seja naturalmente.

VI.

Lembra pedaço meu, dos pedaços espalhados de rosas, de água, do fogo bruxuleante que segou nossos sentidos e apoderou-se de nós?

Indefectível.

Se olhássemos para cima nos víamos e para o lado direito também estávamos lá. Eros nos saldava cortejando mil cento e um anjos de bochechas rosadas, arcos e flechas retesadas apontando em nossa direção. Nem tentamos esquivar. Foram mil cento e duas flechas. Não me recordo quem repetiu o alvo, mas este único dardo flamejante foi necessário para dividir opiniões acerca de quem saiu mais comburente. Se a vela, o sol, o girassol, o vaga-lume, o dardo flamejante ou nós. Um de cada vez. Cada qual com sua intensidade, porém todos estavam em mim e todos estavam em você.

VII.

Lembra extensão de mim, do som que fazia o cheiro das pétalas quando tocavam a água? Era o seu braço quem as possuía.

Egoisticamente.

Eu bem lembro. Tinha uma faixa roxa para contrastar a vermelhidão na entrada da porta e depois vieram as bolhas transparentes e geladas confundindo o som daquele cheiro. Rosas, duas vezes, e eram de verdade.

Toda lembrança é uma saudade e toda saudade um envelhecer.

O tempo é implacável.

VIII.

Quando saí de trás dos muros que fiquei seis anos, foi ela quem me acolheu. Não sei que brilho tocou seus olhos, mas foi ela quem me acolheu. Depois desistimos. Ela foi para uma toca, como a raposa de Exupèry, e eu fiquei com uma libélula. Eu até gostava de libélulas, mas deixou meu sangue obscurecido. Quando saiu da toca, ela preferiu um colar de cocos. A libélula voou. Percebeu asas e um esporão. E os cocos, quebraram-se.

Foi preciso outros seis anos para que eu subisse no telhado do meu corpo para conversar com as chamas do céu. Ela também havia estado, no mesmo momento, no telhado do seu corpo e conversado com as chamas do céu. Nos encontramos sob o mesmo telhado.

Eu segurei sua mão. Ela notou. Não se esquivou.

O amor se faz de formas inesperadas e o tempo, por si mesmo, é paciente.

Walter Welington
Enviado por Walter Welington em 21/11/2007
Reeditado em 21/07/2011
Código do texto: T745588