Com o Tempo...

Tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac

O ponteiro do relógio agoniadamente se move.

Eu sei que ele não quer se mover... Aqui dentro ninguém quer.

O cheiro de mofo cobre todo o aposento, tudo está empoeirado.

O piano continua aberto, eu havia o deixado aberto da ultima vez em que... Deixe isso para lá. O piano continua exatamente da forma como estava da ultima vez.Aberto, e empoeirado. Sempre que tocava nele saía com os dedos negros de poeira.Não consigo me aproximar do piano. Ele me lembra aquele dia em que fiquei a madrugada inteira escrevendo uma partitura para ele que tinha como nome "Mesmo que efêmero".A música que ele nunca ouviu, e jamais irá ouvir... Já que agora, ele foi embora. O tempo passou em nosso templo de luxúria. Era aqui o lugar onde nós encenavamos todas as nossas fantasias baratas e noturnas. Apenas noturnas. De dia mal nos viamos, não é querido? Parece que consigo ouvir o piano tocar a minha melodia sozinho... Me vejo sentada em frente ao piano nua, tocando e fazendo pausas para fumar um cigarro no divã estampado de zebra.

As longas cortinas cor de vinho continuam fechadas, o sol não entra, e o mundo lá fora é insignificante. Era insignificante. O quadro de Toulouse Lautrec está torto. Torto e empoeirado.

Como sempre esteve. Poeira e teias de aranha entre a moldura dourada. E os amantes continuam se beijando, o nome do quadro é Le Baiser (o beijo).

Eu sonhava em ter uma pintura minha e dele com a mesma posição, com o mesmo baiser e lembro-me como ele gostava do meu biquinho blasé ao falar francês. Lia Victor Hugo em voz alta, nua como sempre. Apenas com uma cartola na cabeça e luvas de pelica pretas até o cotovelo. Eu conseguia ser tudo o que ele queria.

Um dia escrevi em seu corpo versos em francês, que ele me implorou para ler a ele e traduzir, eu não o fiz. Os versos eram versos de odio. Ele estava começando a sumir. A casa já estava começando a cheirar a mofo, e o piano se empoeirava mais. Ele era a minha inspiração. Esta casa o ostensório de musica e luxuria, e só. Nunca morei aqui, mas morei aqui com ele. Nunca me senti a vontade aqui, mas com ele me sentia. Esse piano... Só era tocado se antes minhas mãos tivessem percorrido o corpo dele. Ele. Fonte de inspiração translucida. Era assim que eu o chamava, e foi assim que o chamei da ultima vez. Quando ele saiu por estas portas de madeira bruta. Ele saiu alegando que não me amava mais. A verdade é que ele nunca me amou. E a segunda verdade é que eu nunca o amei. Eu nunca amei ninguém a não ser a imagem da memória. Apenas isso. O tempo. As memórias guardadas de forma dramática. Era isso o que eu queria, algo que me fizesse acreditar que a vida é um filme, e que a arte é de fato inspirada na vida, nada alem disso. Milan Kundera dizia "De que vale a vida, se o proprio ensaio da vida, já é a vida?". De que vale a vida? Não vale uma nota músical que eu tocar no piano empoeirado, disso pode ter certeza. E quando ele foi embora, digo, quando ele partiu... Ele... Ele conseguiu levar consigo tudo o que havia nesta casa velha. A magia de lasciva. Os ares familiares. Mas o filho da puta teve que morrer. Fazem dois meses. Dois meses em que minha inspiração translucida saiu deste mundo para sempre. Nós tínhamos mania de dizer que nada era para sempre, mas tinhamos esquecido da morte. Ela é eterna. E o tempo... O tempo passou, e agora, o que me resta, é esta casa desconhecida, o piano que parece nunca ter sido tocado, e o quadro de Toulouse que eu jamais havia visto antes. Neste templo de outrora, nada mais me pertence.

Ele nunca foi meu... E o tempo, escorreu de meus dedos como areia. Mas o que me agonia ao pisar nesta casa, é perceber... Que eu amei, e ele nunca vai saber o quanto.

- Anastásia Ottoni

Inspirado na música de Léo Ferre - Avec le temps

E no quadro de Toulouse Lautrec - Le Baisers

*Citação de Milan Kundera no livro "A insustentavel leveza do ser"