Sempre recordar.

Eu soube que, quando nasci, a primeira palavra que a minha avó falou foi: “coitadinha!”

Ela tinha os seus motivos: a cada parto um sofrimento exagerado, o medo da morte, dores inacreditáveis em meio às parcas condições no interior das Minas Gerais naquele início do século XX.

A minha avó Noêmia relembrou essas dores quando eu nasci. Pensou que, um dia, eu teria que passar pelas mesmas. De resto, ela tinha coragem de sobra para enfrentar a sua, que foi uma longa estrada.

Possivelmente a maioria das mulheres – ou – das crianças que nascem mulheres – devem ouvir isso ou sentir essa energia que vem dos sentimentos das mais velhas.

Não é fácil. Nunca foi fácil ser mulher. Em qualquer situação.

Ser mulher é ter que enfrentar uma luta diária para estar no mundo, se fazer ouvir, fazer calar uma agressão, construir um espaço, chegar à universidade, escolher e fazer valer uma profissão...

Ser mulher é ser como dona Lindu e dizer para os filhos: “hoje não tem comida mas amanhã vai ter”.

É como ser a mãe pobre, que lava e passa, esfrega o chão e, à exaustão, leva para os filhos a promessa de um pouco de arroz e feijão. Provavelmente nenhuma outra garantia.

É como ser a mulher indígena, que luta pela defesa da terra e pela preservação da própria cultura, pela valorização da sua medicina e enfrenta corajosamente os gordos e armados latifundiários.

É ser como aquela em situação de rua, que mal sabe o que fazer para manter alguma dignidade.

É ser como a dona Leonor, senhora negra, mãe de uma grande amiga de adolescência, que criou a filha sozinha e trabalhava com muito bom humor e vivia naquele cortiço no bairro operário do Cambuci e sabia que não teria como sair de lá. Ela jamais perdeu a boa risada. A filha conseguiu estudar, hoje é psicóloga e ensina a importância da valorização do auto-respeito às suas clientes.

É ser como a enfermeira que passa as madrugadas atendendo no hospital, sem jamais poder se sentar um pouco... mas quando amanhece, tem que voltar para casa, arrumar o filho ou a filha e levar para a escola. Se tiver escola...

É a professora que acredita num mundo melhor, trabalha à exaustão, dorme pouco, não tem lazer e se esfola na elaboração das aulas, na correção das provas, enfrenta turmas inquietas e sem compromisso, recebe um baixo salário... e nunca nada está bom.

É a médica, é a freira, a mãe, a avó, a tia, a comadre, a prima, a quilombola, a doceira, a jardineira, a florista, a faxineira, a desempregada, a vendedora de trimania, a artista, a jornalista, a empresária de sucesso ou não. É aquela que trabalha no sacolão. A telefonista, a aeromoça, a balconista, a benzedeira, a parteira, a mulher da floresta, a dentista, a farmacêutica... todas nós somos uma. Ao mesmo tempo, únicas na sensibilidade, na doação do afeto, na disponibilidade da vida, na responsabilidade nas coisas que Deus deixou. O feminino rege o tempo.

O que dizer das mulheres que lutaram contra a amarga ditadura?? Mulheres com medo sim, mas com a crença de que era possível se fazer deste um país com brilho próprio, com sonhos e liberdade. A mulher guerrilheira, que sofreu, passou noites em claro, abandonou familiares... e viu que o país era maior e com causas muito justas... se expôs e sofreu. E sofreu e sofreu. E as mães a procurarem suas filhas nas prisões... e os machos de plantão a debochar, a distorcer informações, a humilhar com prazer inaudito. Quantas agruras, meu Deus! O olhar dessas mulheres era infinito como a dor da tortura. O ódio enfurecido dos machos a torturar, com especial requinte de crueldade... afinal, eram mulheres e contrárias ao estabelecido , dispostas a mudar o mundo. Essas são as mulheres que, desde a minha juventude, me afeiçoei com o mais sublime e eterno respeito que alguém possa almejar.

Hoje meu coração está especialmente com a mulher refugiada. Não apenas da Ucrânia, mas todas aquelas que fugiram de alguns países da África, na tentativa desesperada de conseguir entrar na Europa. As mulheres sírias, as palestinas... todas tendo que abandonar suas origens, suas histórias, seus amores, suas lembranças... para tentar continuar vivas. Nas suas bagagens vão o medo, o desespero, a indignação. Os filhos no colo, perguntando: para onde, mamãe??? O coração não responde.

A mulher moradora de rua ... também quer um perfume. Uma vez, na catedral de São Paulo, uma mulher me pediu dinheiro para comprar um batom. Sinceramente eu não tinha naquele tempo um único centavo que pudesse dispor. Que ela me perdoe.

E quem nunca sofreu agressão barata por ser mulher? No ônibus, no metrô, na rua, na loja? Na própria família? Com algum colega de trabalho? Quem nunca???

Hoje lutamos pela dignidade e pela nossa honra. E não há moeda de troca.

Parabéns a todas as mulheres deste planeta. E que saibamos sempre cultivar o amor-próprio e jamais sermos reféns da dependência emocional e financeira. Sejamos livres de todas as amarras, dos preconceitos, dos absurdos que a história insistiu em nos impor.

Que a cada dia sejamos mais fortes e firmes na alegria de viver e com a coragem de manter o brilho no olhar.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 08/03/2022
Reeditado em 08/03/2022
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