FRATERNIDADE

Jorge Moraes Júnior sempre teve identificação com as áreas científicas vinculadas à zoologia. Desde tenra idade mostrou interesse, carinho, trato e dedicação a gatos e cães. Fez algumas incursões pela agricultura num diminuto espaço de fundo de quintal, conseguindo colher vistosas cabeças de alho e algumas hortaliças. Muito mais pela intuição que pelo conhecimento, atuou no parto de gatas e conseguiu diminuir o sofrimento e a morte de alguns exemplares. Na garagem, havia espaço destinado à recuperação de animais que haviam sido atropelados, agredidos ou acometidos de indisposição pela idade ou pela alimentação. Medicamentos caseiros, vacinas, bisturi, bandagens, gaiolas não faltavam em seu modesto laboratório.

Quando da escolha do educandário para cursar o segundo grau, não hesitamos: Colégio Agrícola Visconde da Graça (tradicional CAVG) à época, vinculado à Universidade Federal de Pelotas, e desde 2010 é um dos campos tecnológicos do Instituto Federal - Sul. Chegamos a pensar que faria opção por uma Engenharia Agrícola ou Veterinária. Inclinou-se à Química e Biologia, atuando no magistério e administração escolar.

Naturalmente alguns pontos foram preponderantes na aceitabilidade do curso e do educandário: Teve como colega o primo Nílton; pôde dar vazão ao seu comportamento e linguagem identificados com o universo rural; estabeleceu ótimo relacionamento com os professores e funcionários - alguns de nosso círculo de amigos; encontrou respostas às inquietações zoológicas em algumas disciplinas e dedicou-se, mesmo que com algumas limitações, à apicultura, contando com o apoio do professor Paulo Dalmann.

O entusiasmo chegou a tal ponto que quase todos os dias, às refeições, havia elementos a serem acrescidos: sementes, métodos, técnicas, animais, publicações, cursos de final de semana. Procurávamos, ainda que sem diminuir a atenção dada ao Roger e Maurício, prestar assistência e colaborar, principalmente nos deslocamentos. Os colegas mais próximos foram se achegando. E por terem os familiares residentes no interior sentiam-se sozinhos e solitários. Conseguiriam reunir mais dez componentes da mesma turma ou de turmas distintas: primo Nílton, Sérgio Igansi, Tailor, Bagé, Gemada, Mauro Portelinha, Roger Esteves, Paulo Rodrigues, João Armando, Lúcio Fernandes, Santo Cristo, luz baixa, charolês, caturrita, pescoço, porca prenha, cabrão – estudavam e churrasqueavam na garagem. Fundaram um núcleo de culto às tradições gaúchas. Uma prancha, numa costaneira, identificava o grupo: Espora de Prata.

Tanto foi que o Júnior investiu, honrosamente, numa nova conquista: uma galinha. Improvisou o ninho numa pequenina área junto à cozinha e um banheiro, no compartimento destinado ao armazenamento do botijão de gás. Estaria bem abrigada do frio e da chuva. Desdobrava-se em cuidados, à espera do grande feito: o aparecimento do ovo ou dos ovos.

Já ultrapassara todos os limites da tolerância. Tornara-se uma obsessão. Tornara-se comum encontrado-o, contemplando, pacientemente, o projeto galináceo, como se fora um monge num monastério tibetano. O cacarejo renovava os anseios e a certeza. Enquanto isso, a realização, que se concretizaria na postura, não passava de um ardoroso desejo, uma fantasia, uma quimera.

Sua angústia contaminara a todos. A cada sinal corríamos, hipotecando solidariedade. Com o passar dos dias, surgiram piadas, pondo em dúvida a possibilidade pretendida, gerando, naturalmente, pequenas rusgas com os irmãos.

Eis que num inesquecível final de semana, o Júnior adentrou à cozinha, quase não conseguindo falar, numa alegria incontida, pálido. chamando-nos a ver o que acontecera. Finalmente a galinha pusera o tão aguardado ovo: o primeiro, talvez, de uma série.

Todos acorreram ao ninho. A espera havia gerado grande expectativa. Júnior, exultante, emocionado, declarava:

– Eu não disse que ela ia botar ovo? Vocês duvidavam, taí! E agora, continuam duvidando de mim?

Nosso avicultor havia visto o ovo, porém ainda não o segurara. Cuidadosamente, aproximou-se do ninho, afastou a galinha e tomou às mãos a grande conquista. Conseguira ascender ao pódium e erguer o colimado troféu. Ao fazê-lo, olhou-nos intrigado, o ovo que deveria estar, pelo menos, morno, estava gelado. Descobrira-se a razão pela qual a galinha estava em pé. Indignado, queria saber quem era o idealizador da façanha?

Não demorou muito para que fosse descoberto o mentor da artimanha. O Maurício, sem que demonstrasse maldade, tentando diminuir o sofrimento do irmão, colocara no ninho um ovo retirado do refrigerador.

Um sentimento de frustração e raiva apossou-se do incipiente criador. E tivemos trabalho em contê-lo, a fim de que não descarregasse no irmão a ira, pois se julgara ridicularizado.

Durante um bom tempo, a galinha que punha ovos gelados foi motivo de chacota. Provocações constantes encontravam reações imediatas. Mas foram diminuindo, diminuindo, até que foram sepultadas no esquecimento.

Sempre sonháramos em dispor de casa na área rural, “terrenito” de dois ou três hectares, um parreiral, uma ou duas vacas para o leite e o queijo, plantação de hortifrutigranjeiros, uma pocilga, galpão com churrasqueira e um lugar para receber amigos. Poderíamos criar não apenas uma galinha, poderíamos ter um pequeno aviário.

A oportunidade aparecera. O amigo Roberto Andretti tomou conhecimento de que havia no Arroio do Padre, à época, município de Pelotas, emancipado em 1999, uma modesta propriedade que atendia aos nossos anseios.

Segundo informações colhidas junto ao Júnior, pois já não nos lembrávamos desse fato, a galinha dos ovos gelados fora incorporada às demais existentes na propriedade colonial e surpreendeu-nos com a postura de ovos com duas gemas. Desta vez em estado natural e sem a fraternal colaboração do Maurício. Para quem não sabe, irmão é irmão em todas as horas.

jorgemoraes_pel@hotmail.com

Jorge Moraes
Enviado por Jorge Moraes em 03/04/2022
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