PEQUENAS  CRÕNICAS  DO  COTIDIANO
                   (FRONTEIRIÇA  LINDA)


Cinco  horas  da  manhã e  ele  já  estava  acordado.
No  fogão  à  lenha  chiava  a  chaleira  de   ferro e no  terreiro dava-se  andamento  ao  preparo  do  chimarrão.
Parecia  um  ritual ! Apertava-se  a  erva  de  um  lado da  cuia, fazia-se  uma  ligeira  pressão  com  a  bomba  para  firma-la, uma  pequena  cavidade  e  estava  preparada  para  receber  a  água quase  fervente.
Sem  a  menor  necessidade de  despertar  tão  cêdo, eu estava  sempre  ao  seu  redor  a  pedir-lhe  a  benção.
[ Sim ! Sou  do  tempo  do bença  pai ! Bença  mãe! ]
Em  algumas  ocasiões - no  outono  e  inverno - parecia  noite ainda e das  lembranças  que  guardo  comigo, uma  delas  é  de  meu  pai apontando  para o céu  mostrando-me  a  estrela  Dalva em fins  de  madrugadas que  deitavam-se em  solene escuridão sobre  o telhado  do  paiol.
As  conversas  eram quase  sempre as  mesmas e  um  rosário  de obrigações  a  cumprir durante  o  dia  que estava  se iniciando soavam-me  tão  afetuosas  que  os  compromissos transformavam-se num  quase  prazer.
A  cozinha  incensava-se aos cheiros  de mate e do  café  que ia-se  coando.
Eu...Ali.
Sentado  numa  cadeira  de  palha de  fronte à  boca  do  fogão. As  chamas  crepitando e eu  observando  o  braseiro num  voejar  de  pensamentos.
Eram  tantos  sonhos, alguns  tão  loucos, que sequer  me recordo.
Depois, a  caneca de  uma  louça grossa - parecia  porcelana - as  peras e maçãs  a decorar-lhe uma das  bordas.
Com  as  mãos em  concha  amparando-me  a face, adulado , eu  observava atentamente os  movimentos daquele  que  era o  meu  melhor  amigo:
As  bolachas "Lucinda" trituradas no  fundo  da  caneca  e a  camada  de  café  com  leite encobrindo-lhes , formando aquilo  que ele  denominava de  "passunguête".
A expressão  de  carinho a   servir-me a  primeira  refeição  do  dia sempre  acompanhadas de algumas  frases  de efeito:
-Isso  é  pra  “firmá o  purso ! “... Um  dia  ainda  vais aprender  a  tomar  chimarrão !
Não  aprendi, nem  gosto  rsrs...
E  quando  ele  se  ia, eu  comandava  o meu  destino.
O  dia  nascendo  lá  fora, a  festa  das galinhas disputando grãos  de  milho, e na  casa  viizinha , o  estalar  do  chicote fatiando  o  ar. Era tio Elias a  caminho  do  trabalho.
Um  ligeiro aceno  com  o polegar levantando discretamente  a  aba  do chapéu  e a  carroça deixando-se  engolir  pela estradinha de  chão.
Eu  correspondia ao  aceno com  ares  de adulto.
Na  prateleira restavam alguns  acordes pela  rádio  Farroupilha  de Porto  Alegre (meu  pai era  fã  do Teixeirinha) e  o dia  implantava-se na  rua  do  Fomento.
A  fileira  de  casas, cercas  de  ripas, pessegueiros e macieiras resguardando  as  moradias.
Da  minha  janela eu  sondava  encantado  as  chaminés louvando as  primeiras  horas  do  dia em  carretéis  de  fumaça que iam-se  dissipando aos  poucos ao sabor  dos  ventos.
Na  sequência, meus  amigos e  eu  a  caminho  da  escola.
Tudo  tão singelo mas  significante nestes  meus  recordares.
No  you  tube  busquei  o  ídolo  de meu  pai e uma  canção que  minha  prima  Zita cantarolava  com  enorme  emoção.
Tantos  anos não a revejo, não  sei  por  onde  andas, onde  mora.
Nesta  tarde de  outono, sob  um  céu  que  tenta  rasgar-se  em  azul ainda  que  as  núvens  escuras  não permitam, bateu  uma  saudade daquelas  madrugadas tão  distantes,do  aceno  discreto do  elegante  tio  Elias, da  prima  Zita, à  sombra dos  arbustos que circundavam a  casa  em  que  morava, e aquele  refrão:
“Fronteiriça  linda ! Não  perdoo não ! Não  perdoo nada  você foi  culpada  da  separação...”
Entra  agora  um rastro  de   sol  pela  minha  janela e  algumas  sombras  projetadas  na  parede são  parceiras  de minhas  divagações.
Clic  no  link  para  ouvir:

https://www.youtube.com/watch?v=DoG9yq_YBCM

 
IRATIENSE THUTO TEIXEIRA
Enviado por IRATIENSE THUTO TEIXEIRA em 03/04/2022
Reeditado em 03/04/2022
Código do texto: T7487334
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