ELA

Vejo tanto rosto por dia, natural que eu perca uma ou outra fisionomia, não venha dizer que isso é imperdoável, você também não lembra de todos que conhecem. Muitas vezes, assim como eu, finge ao abraçar alguém que o reconheceu, fica sem graça em perguntar o nome, pois a pessoa abriu um largo sorriso ao te ver e te chamou tão carinhosamente pelo apelido. Conversa, sempre tomando o cuidado de não deixar transparecer que não sabe de quem se trata, dá notícia da família, promete aparecer algum dia desses, sorrir cordialmente, até que chega o momento da despedida, respira aliviado quando vê a figura ir se afastando, perde um ou dois minutos tentando lembrar, quando não consegue, sepulta outra vez aquele rosto e prossegue normalmente a rotina.

Sempre faço isso, porém ontem encontrei a exceção para esta regra. Sou uma espécie de pessoa que vive fazendo planos, sonho o dia inteiro, tenho um mundo completo na minha imaginação, por isso sou pateta. Quando ando na rua presto pouca atenção em tudo, por isso é difícil saber se estou realmente enxergando o que meus olhos vêem, por causa dessa patetez aguda já passei por muita situação complicada, namorado com ciúme, mulheres constrangidas, rapazes que pensam que eu sou gay, enfim esse meu jeito sempre acarretou problemas. Ontem, no entanto, eu estava patetando normalmente quando senti tocarem o meu ombro, demorou alguns segundos para que meu pensamento voltasse à urbe, naquele exato momento ele estava em meio a minha futura fazenda, admirando a imensidão dos meus domínios. Quando retornei ao presente, notei que meus olhos estavam fixo na moça ao meu lado e era ela que me tocava, sorri, ela me abraçou, não fazia idéia de quem se tratava, mas estava gostando do abraço, deixaria me conduzir, fazer outra vez aquele jogo tão normal.

Entretanto daquela vez eu notei que era diferente, ela também não falou meu nome, mas eu sentia que a conhecia. O primeiro contato foi um abraço mudo, a moça principiou o assunto, perguntou-me como eu estava? Respondi que bem, ela riu, perguntei o porquê do riso, a resposta veio franca, disse que sabia que me conhecia, tinha certeza disso, mas, não lembrava de onde, e completou, jurando que aquilo não era nenhuma cantada. Eu pela primeira vez nestes casos também fui sincero, falei que comigo estava acontecendo à mesma coisa, apresentamo-nos, as lembranças não vieram. Convidei-a para tomar um chope, ela disse que não tinha tempo, precisava ir para o trabalho, lembrei que eu também precisava trabalhar. O ônibus dela apareceu dobrando a esquina, não queria perdê-la, pedi rápido o telefone, ela falou uma seqüência de número, fez o sinal para ônibus e subiu, de dentro dele acenou. Dessa vez não foi alívio que senti ao vê-la ir, uma estranha falta.

Ontem levei muito mais que dois minutos tentando lembrar daquele rosto, larguei meus devaneios rotineiros e me concentrei nessa tarefa, o dia terminou e nada. Tinha o telefone, queria ligar e dizer que havia lembrado, talvez quisesse essa desculpa para não parecer fraco. A noite chegou, adormeci pensando nela, sonhei que ela fora minha esposa em outra vida, que vivíamos bem, tínhamos uma casa pequena rodeada de natureza, um filho que tinha os olhos da mãe, éramos felizes, porém um estranho invadiu nosso lar, destruiu nossas coisas, lutei com ele, apanhei, ele a raptou. Acordei suado, sem pensar direito, peguei o telefone e disquei o número dela, eram duas da manhã, mesmo assim a moça atendeu, contei rápido o sonho, ela escutou, disse que eu era o homem mais sincero do mundo, que tinha um jeito único, especial e que queria me ver, marcamos para hoje depois do trabalho, estou morrendo de ansiedade.

Penso que tem algo misterioso que nos envolve, hoje sairemos, amanhã é imprevisível, talvez nos tornemos grandes amigos ou namorados, talvez ela leia um dia esse relato e se veja nele, talvez nos casemos, talvez venhamos a nos odiar, mas faremos parte da vida um do outro, nem que seja numa lembrança perdida quase esquecida