Diálogos Soltos

Por volta das doze e meia subi no ônibus que me levaria até minha casa e sentei no último banco entre uma senhora vestida como ‘chola’ e uma mocinha que também voltava da universidade. Em pé, à nossa frente estava um senhor, mas eu ainda não o havia notado. Troquei algumas palavras com uma amiga que estava sentada à minha frente sobre um exame que eu iria fazer mais tarde.

Quando a moça ao meu lado saiu, o senhor que já havia sentado se aproximou e começou a ler a minha apostila em voz alta, como quem diz “óia eu sei ler”. Aí que eu fui reparar no sujeito. Baixo, bem velho, numa das mãos somente meia banda da palma e um dedo polegar, poucos dentes na boca, zarolho (estrábico), vestido socialmente com roupas bem surradas. “E agora? Tenho que estudar e ele vai atrapalhar”, pensei.

O velho continuou lendo. Lia bem! Sorri e ele disse: “ah sociedade e saúde”. Queria ler isso pra me socializar. Pensei se aquilo tinha sido uma indireta ou alguma forma de ironia, mas apenas sorri sem graça e perguntei se ele gostava do tema. “Sim, gosto de me socializar”. Pensei: é ironia. Mas sua cara era mais de quem estava puxando assunto do que de sarcasmo.

- O senhor lê bem.

A senhora ao meu lado que o tempo todo estava segurando um papel tampando a boca me disse: “Não, ele não sabe ler não, está aprendendo agora”. E cuspiu para fora da janela.

- Ela acabou de arrancar alguns dentes, o velho disse fazendo uma cara sofrida.

- Putz dói! Falei ainda tentando me concentrar na leitura.

Não deu... Fechei a apostila e me pus a conversar com os dois. Estavam indo para o terminal para pegar um outro microônibus para seu “pueblo”. Aparentemente era um casal.

- Você é brasileiro né? É só olhar que a gente percebe. Tá estudando aqui?

- Sim...

Seguiu-se uma longa conversa sobre tudo, desde as “chicas” bolivianas até a igreja. Como fomos chegar na igreja? Eu não lembro bem, mas acho que deve ter sido quando ele me convidou para ir a seu “pueblo” num domingo.

- Você vai ser dentista? A senhora falou, antes de cuspir de novo pela janela.

- Não (eu ri). E ela cuspiu de novo.

Conversa vai, conversa vem. Perguntei o nome do senhor. “Marcelino amigo, mi nombre es Marcelino”. Me perguntou se eu era evangélico, e eu disse que era anglicano.

- Americano?

- Não, Anglicano.

- Ahhh. E eles instruem bem (gostei quando ele usou essa expressão).

- Instruem. E você?

O senhor fez silêncio e logo balbuciou alguma coisa. Provavelmente era católico... Boa parte do catolicismo boliviano é bastante sincrética (como no Brasil), mistura elementos indígenas, animistas das religioes andinas e outras coisas mais, o fato da senhora vestir-se tradicionalmente (chola) dizia muito sobre suas orígens...

Confesso que quis ‘evangelizar’. Quase fiz. Mas resolvi não olhar aquele senhor como um perdido pecador a ser encontrado, e vê-lo somente como um irmão tão igual quanto diferente a mim. Sabendo dos novos ventos de volta às origens que estão soprando aqui na Bolívia, resolvi dialogar – apenas - e nada mais.

Conversamos um pouco mais enquanto eu pensava na “teologia” daquele casal, não a que eles devem ter a-prendi-do em algum catecismo (muito provavelmente nem sabiam o que era isso) ou n’uma igreja, mas a da vida, a teologia prática deles. Aqui eu peço permissão para usar este termo “teologia” para algo bem mais simples, a saber, a idéia que qualquer pessoa tem de Deus e da relação desse Ser com ela, a pessoa, enfim, a palavra “teologia” não cabe muito bem mas é ela que eu quero usar.

Não deu muito tempo pra conversar. E confesso que estava gostando da conversa muito engraçada, principalmente quando o velho disse que queria conhecer a minha amiga. Mas chegou a hora deles baixarem. A senhora levantou-se primeiro, ele depois, ainda esticou a mão mas eu não vi, só vi quando ele encolheu.

- Hasta luego!

- Inté!

A conversa foi estranha e rápida. Mas abriu a porta para uma reflexão que considero muito importante que diz respeito à evangelização.

É possível que nossos conceitos e métodos de evangelização ainda estejam carregados, encarcerados na modernidade ou mesmo na pré-modernidade. Talvez ainda sejam estilo colonialista. Explico. Eu-igreja-cristã indo conquistar povos pagãos estabelecendo a minha teologia sobre eles. Que me perdoem os irmãos adeptos das “quatro leis espirituais” (notem que não estou menosprezando tal estratégia) mas tenho visto (e creio que não seja apenas eu) que essa espécie de evangelização pode não ser a única, nem mesmo a mais recomendável em nossos dias de globalização. Vejam, conheço o conteúdo de tais métodos, são importantes, mas não creio que sejam tão eficientes assim como imaginamos.

A evangelização não pode mais ser vista como o estabelecimento do “Cristianismo” numa região ou pessoa. Em nosso mundo pós-moderno quase geralmente cada religião, cultura, ideologia sabe da existência das demais outras, e quase sempre a tendência é ver qualquer “evangelização” como um ato de ofensa, afronta ou desrespeito à verdade-realidade do outro. Grupos e mais grupos têm a cada dia mais se fechado em guetos em busca de preservação da identidade, ou do resgate dela, frente à ocidentalização geral. São dois lados da mesma moeda-pós-moderna: globalização e polarização.

Todos sabem sobre todos e todos sentem-se ameaçados por todos.

Dessa forma o Diálogo (re)surge como alternativa possível para a propagação das Boas Novas. Mas dialogar não deve ser apenas o ato de conversar. Diálogo enquanto evangelização é muito mais que uma conversa com fins proselitistas, mas é o evangelizador vendo o “evangelizado” como igual e diferente à vez. E mais, é o evangelizador e o evangelizado se fundindo, trocando informações, sem que haja um maior e um menor, somente seres iguais, com história de vida e perpectivas de mundo e de Deus diferentes. O que se propõe a trazer a Boa Notícia não vê o outro como uma “folha em branco” que deve ser escrita com a “Doutrina Correta”. Deve-se ao contrário ressaltar e receber o que o outro tem de bom para dar, enquanto oferecemos o Evangelho que temos.

A chola sentada ao meu lado era seguramente indígena (aproximadamente 40% da população boliviana é indígena) e provavelmente cresceu ouvindo as histórias de seu povo passada oralmente de geração a geração. Evo Morales que é um homem-grupo que expressa os pensamentos e sentimentos do grupo inteiro, tem falado sobre volta às orìgens, ou seja, às religiões animistas, xamanistas dos seus ancestrais. Os indígenas querem isso, pois ao contrário do que pensamos, ainda vêm o Cristianismo-espanholado como invasor, como algo que lhes foi imposto com violências. E nesses dias de busca de identidade (como disse uma tendência acentuada pela Pós-Modernidade) aflora o que está no consciente e incosciente coletivo desses povos - o abuso cultural.

Este é apenas um exemplo talvez extremo do que ocorre muitas vezes na evangelização. Muitas vezes ocorrem abusos espirituais, culturais, derrubamentos dos outros com as armas da lógica, da intelectualidade, do medo, do castigo, do inferno, da porrada...

Com o diálogo o evangelho volta a ser visto como novas de paz, de reconciliação, de justiça, imposta pelo amor que passa a florescer nas consciências. Deus deixa de ser um zeus-doidão para ser A mãe que cria, recria, acolhe, consola, perdoa, não apenas em discursos mais principalmente em ações através de nós.

Dialogar não é apenas uma nova estratégia de evangelização mas uma forma de fazer o evangelho ser ouvido com bons ouvidos pelas diversas culturas que emergem no mundo globalizado.

Dialogar é perguntar: O que você tem? O que você pensa? O que você quer? Como você faz? O que você não gosta? E mais... O que você tem a oferecer? O que quer oferecer?

Talvez já esteja mais que na hora de olharmos o nosso próximo como igual, fazendo a ele aquilo que queremos que ele nos faça (Lucas 6.31), e também como diferente, respeitando suas opiniões. A mensagem de Cristo, sua pessoa, sua obra, precisam continuar sendo anunciadas pois as pessoas precisam e desejam ouvir. Mas em nosso tempo precisamos quebrar paradigmas que existem em nós e que nos impedem de vermos que Deus é Deus sobre todos e que seu Espírito, assim como o vento, tem soprado em todos os cantos da Terra.

Abcs.

Inté!