Alguma dúvida, Micheque?

Senta aqui um pouco ao meu lado, Micheque e me dê um pouco da sua atenção.

“Ser mãe, esposa, ajudadora; esse é o papel da mulher.” Acabo de ler isso num jornal eletrônico.

Eu gostaria de te convidar a entrar um ‘cadinho’ na vida real. Mas só um pouquinho, prá você não se assustar.

Eu venho de uma família humilde. Humilde mas com estudo, sabe como é? Muitos dos meus antepassados tiveram seus nomes provenientes de personagens de Shakespeare. É. William Shakespeare, o poeta nacional da Inglaterra, já foi considerado o mais influente dramaturgo do mundo. Respeitadíssimo pela comunidade acadêmica, literária e artística do planeta, foi autor de diversas peças de teatro que sobrevivem às mudanças dos tempos, às guerras, aos períodos de paz, aos tempos das infames e nefastas ditaduras. É autor também de um texto fascinante: “Manual de Sobrevivência”. É aquele que diz: “Depois de um tempo, você aprende a diferença, a sutil diferença, entre dar a mão e acorrentar uma alma... Aprende a construir todas as suas estradas no hoje, porque o terreno do amanhã é incerto demais para os planos e o futuro tem o costume de cair em meio ao vão....Por isso, aprenda a plantar seu jardim e a decorar sua alma ao invés de esperar que alguém lhe traga flores ”. Lindo, não é? O texto é bem maior, mas eu só dei uma resumidinha. Em “O Mercador de Veneza”, de 1600, Shakespeare também dizia: “O diabo pode citar as Escrituras quando isso lhe convém”. Cruzes!!! Bom, deixa isso prá lá.

Como eu estava lhe dizendo: eu vim de uma família simples. Morei num sobradinho pequeno que não tinha nem garagem para o nosso fusca 67. Telefone demorou a chegar e, um dia, minha mãe comprou na feira meio quilo de balas e eu nunca me esqueci da importância dessa fartura.

A minha mãe sempre trabalhou. Em gráfica, em loja de roupas. Foi professora. Conseguiu se formar no tradicional colégio Caetano de Campos, o mesmo colégio que o Sérgio Buarque de Holanda e a Cecília Meirelles tiveram também passagem. Mas você não os conhece, não é? Nunca ouviu falar? Nunca os leu? Nem um tiquinho? Pois é.

O meu pai estudou bem menos mas sempre foi trabalhador. Uma dignidade que, algumas vezes, eu cheguei a achar exagerada. Impecável nas empresas onde trabalhou. Chegou a ser executivo e nunca deixou que alguém arrancasse um único centavo em proveito próprio.

A família foi assim. O que muito me orgulha.

A minha avó... ah, a minha avó. Lá naquele interiorzinho de Minas ela cuidava de uma vendinha e fazia de tudo: broa, biscoito de polvilho, pão, doces, atendia no balcão, fazia o café. Sem contar os cuidados com a casa e os seus quatro filhos e sem empregada. Depois, no final da II Guerra, a família se mudou para São Paulo para que os filhos pudessem estudar.

Mas não vou desfiar um rosário sobre a minha história familiar. Ela é linda, te garanto.

Mas quero falar de mulheres trabalhadoras, fascinantes, corajosas, que jamais deixaram de madrugar para que a vida pudesse caminhar com dignidade e eficiência.

São colossais os exemplos de mulheres trabalhadoras nas famílias brasileiras, Micheque. Milhões, milhões e mais milhões de mulheres se desdobram em mil pedaços para dar de comer aos filhos que choram porque a comida é pouca. Outros milhões pouco dormem porque chegam tarde em casa depois de uma jornada terrivelmente fatigante, mas o despertador já está pronto para um novo dia de labuta. Tem aquelas que nem têm casa. Existem as que passam suas noites em barracos de tábuas finas. Existem as que passam a vida limpando, lavando louça e esfregando o chão, aguentando humilhações de patrões e seus filhinhos, fora os abusos de toda ordem. Milhões se desdobram na lavoura, na agricultura familiar, tentando sobreviver às invasões do agronegócio (afinal, agro é pop, agro é tech, agro é tudo) . Existem as que conseguiram se firmar intelectualmente num esforço imenso, incomensurável e permanecem com salários muito abaixo do merecido. Um outro tanto que padece de trabalhar nas creches para atender aos filhos e filhas de outras mães trabalhadoras, mas os seus filhos ficam aos parcos cuidados de alguma vizinha ou sob ameaça de algum abusador. Existem aquelas que, humilhadas, saem a catar ossos para fazer uma sopa, na tentativa de driblar a falta de um único pedaço de carne. E quantas aumentam o leite com água para encher as mamadeiras dos bebês que choram?

Eu poderia ficar aqui a tarde toda tentando lhe explicar alguma coisa. Micheque. Para essas mulheres não acontece a sorte (????) de um velho passar e lhe oferecer um cheque de 89 mil (será que só isso mesmo?). Ninguém chama essas mulheres que lhe falei de princesas. Não há nada de principesco na vida desses milhões de pessoas. Nada de romântico. Nada de ensaio para mostrar que tudo está bem.

Mas temos sonhos, força, vontade, desejos. Somos capazes de criar nossas almas e sermos donas das nossas identidades com orgulho. E temos autorrespeito: jamais os maridos, namorados ou companheiros saem publicamente dizendo que são imbroxáveis. Dignidade é tão importante como o ar, como o alimento do corpo e da alma.

Micheque, se você olhar um pouco à sua volta vai perceber que só mesmo os hipócritas te aplaudem, assim como o seu cônjuge (ou conje se preferir). Somente os sem-noção.

Podemos ser mães, esposas, ajudadoras, mas não somos sombra, bonequinhas de luxo, jovens enfeites para velhos mal educados, estúpidos, imorais, mentirosos, recalcados e broxas. Somos profissionais. Mesmo aquelas que não têm uma profissão formal, são do lar, trabalham à exaustão todos os dias, sem dia santo nem feriado. Exigimos respeito. Não importa se somos babás, cozinheiras, agricultoras, faxineiras, lavadeiras, professoras, terapeutas, médicas, dentistas, advogadas, engenheiras. Somos trabalhadoras e jamais sombra. Somos dignidade e respeito construído ao longo da nossa história.

Alguma dúvida?

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 06/10/2022
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