CARPINDO A ROÇA DE CANA

 

Faço parte de uma família quantitativamente média. Somos seis irmãos.

 

Como é comum, faz parte, como se costuma dizer, que no decorrer dos tempos e da vida, os irmãos se dispersem, cada um cuidando e vivendo seu mundo, a sua família, as suas necessidades, suas novas e consequentes realidades.

 

Enquanto os pais vivem, os laços se mantém mais apertados e essa dispersão é controlada, parcial. Quando os genitores se vão, soltam-se os nós que ligam os irmãos e a tendência é que a distância se faça mais prolongada e raramente os encontros se façam. Que aquelas conversas saudosas continuem ocorrendo regularmente. É o meu caso.

 

Sinto uma falta danada de estar com meus irmãos, todos. Até pelo meu gosto pela poesia, pelo romantismo natural da vida, sinto falta das conversas que rememoram, que revivem a infância, a formação dos nossos valores e os comparativos dos tempos idos com o “hoje em dia”. Sim, a convivência familiar, é poesia pura. Extraídas eventuais desavenças interesseiras, é poesia sim.

 

Sei que com meus 67 anos, tenho pouco para viver. Matematicamente uns 15 anos, sei lá. Quinze anos são uns pulinhos, uma séria de amarelinha. Uma contação de história mais longa, com divagações e criatividade, como costumo fazer e motivo pelo qual me chamam de chato. Detalhista demais, alongado demais, minucioso demais. Um chato. Apelido comum dado aos velhos, como eu, principalmente se ter o gosto pelos causos, tipo eu.

 

Em minha defesa, digo que não tenho culpa de ter a capacidade de enxergar as nuanças das coisas e dos acontecimentos e tentar fazer com que os olhos alheios desatentos, passem a enxergar os detalhes que passam desapercebidos pelos incautos apressados e que se constituem nos verdadeiros valores da vida e do viver.

 

Queria, aliás, quero, é falar de uma metáfora que sempre uso, ou usamos, quando me encontro com um dos meus irmãos, que é a roça de cana. Quando a gente se encontra, em visitas mútuas, sempre pinta aquele almoço mais demorado, mais farto, enquanto as saudosas conversas rolam, vagando entre valores e informações sobre o que se passa com a vida dos outros irmãos. Fofocas mesmo.

 

Daí, esgotado o almoço e as conversas fiadas, claro que pinta aquela vontade de uma cesta. Sim, imprescindível se recolher ao escurinho de um quarto, aconchegar-se num cama e tirar aquele cochilo preguiçoso, regalo humano desde a mais remota existência. Os índios que o digam.

 

E daí, a gente se despede das conversas, dirigindo-se para a cesta, para o quarto, para o sofá, dizendo que está indo carpir a roça de cana. A metáfora da roça de cama, precisa ser explicada e este o motivo deste texto.

 

É que nos criamos no interior. Pobres sitiantes, caipiras originários, colonos pobres, que cultivavam a terra sem os recursos dos tratadores, dos defensivos agrícolas e as ferramentas comuns eram o machado, a foice e a enxada.

 

Umas das tarefas mais sacrificantes que se executava, era carpir a roça de cama. Enquanto a cana não chega a certo tamanho, o mato crescia no meio e tinha que ser carpida, para não invadir a plantação e minguar a cana em si. E se carpia, claro, com enxada e normalmente em pleno verão, quando o mato cresce mais e mais rapidamente.

 

Imaginem, em pleno mês de março, calor escaldante, as canas crescidas, em torno de um metro de meio de altura, as folas cortantes caídas e uma pessoa no meio delas, carpindo de enxada em punho. As folhas vão roçando os braços, as pernas, o rosto, lanhando, cortando a pele que vai sangrando superficialmente. É danado. Umas das piores atividades dos caipiras originários.

 

Enfim, um contraste total e absoluto com o sossego de estar numa cama confortável, num sofá folgado, a penumbra nos protegendo e aquela preguiça, aquela sonolência confortando a vida e o viver. Bem do jeito que um guerreiro vencedor quer descansar da luta e regozijar a vitória.

 

Bem por isso, a gente diz que vai carpir a roça de cana, que vai para o sacrifício de deitar, cochilar e se deleitar com os bons sonhos que a soneca normalmente permite. Eita coisa boa.

 

Pois que a metáfora está explicada, e meu irmão, que lerá esta prosa, vai entender e fazer com que reviva os tempos de menino e os nossos encontros, esporádicos mas gostosos, saudosamente gostosos.

 

 

 

Eacoelho
Enviado por Eacoelho em 07/11/2022
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