Anos 70: refazendo tudo?

Éramos jovens graciosas- os e idealistas como todos os jovens são, lá na metade da década de 70. Admirávamos especialmente as gerações que com coragem e risco da própria vida, foram brutalmente reprimidas por seus ideais. O legado era de “terra arrasada”, e éramos ou queríamos ser a geração do “refazendo tudo”. Havia tristeza e medo no ar principalmente quando chegavam notícias de prisões ou mortes. Pisávamos o chão do anfiteatro para as assembleias lotadas um pouco aflitas- os, contudo, com boa expectativa para ouvir os oradores da plateia e da mesa. Estive sempre atentíssima às discussões e, conforme os debates e informes se seguiam, surgia um bom argumento que consolidava a pauta, e íamos à votação. Por vezes eu e muito provavelmente outras- os tínhamos boas deduções, mas por timidez nunca me inscrevi para apresentá-las. Nas reuniões aprendíamos a importância do assunto, a forma democrática de discutir questões polêmicas, e isso dava enorme prazer e uma excelente preparação, e animava o espírito de luta e reforçava o ideal e esperança que em graus variados tínhamos de melhorar o nosso mundo.

Nunca faltei a uma convocação de assembleia estudantil. Isso tem tudo a ver com as conversas que mantínhamos meu pai e eu, sobre os anos de chumbo, quando estávamos sob a mira do regime autoritário da ditadura militar. Ainda que muito indignado, meu pai me orientava que essa violência feria os direitos humanos, e marcava de horror e sangue um país, e, que, portanto, responder da mesma forma não significava eliminar as ideias, que estavam bem disseminadas no seio da sociedade por aqueles que nasceram às extremas avessas. Quando me despedi dele para mudar de cidade e iniciar meus estudos ele me falou sobre a oportunidade de ir para uma faculdade pública, e explicou que esta era sustentada pelos impostos pagos pelos trabalhadores ao governo. Claramente ponderou que não poderia passar pela faculdade pública sem deixar minha contribuição, e, portanto, além de estudar, deveria participar das ações do movimento estudantil. Minha apreensão e medo desapareceram quando ele acrescentou estas recomendações: “Nunca esteja só em nenhuma circunstância e nunca deixe um colega só. Sempre em grupo, sempre alerta, e pernas boas para correr. Não tenha medo, mantenha o pensamento firme no seu ideal.” Pronto. Ativista a postos.

Éramos estudantes sem computadores, nem telefones celulares e a grande maioria, sem carro próprio. A comunicação mais veloz era feita pela telefonia comum, os interessados, aguardavam em filas nos postos telefônicos, combinávamos a ligação com a telefonista e quando chamadas- os íamos para uma espécie de cabine. As coisas eram de fato muitíssimo distintas do que são hoje, e as saudades que causavam, também!

Morávamos em “repúblicas”, pegávamos carona para ir e vir da faculdade que distava 8 km da cidade; o supermercado só ficava aberto das 8-12h e das 14-18h, não havia restaurante universitário, e tínhamos aulas, pelo menos a Biologia, de 8-12h e 14- 18h todos os dias. No inverno o frio na cidade era arrebatador, e em muitas ocasiões nossa vida chegou a ser bem desconfortável.

Por essa razão, além do movimento estudantil e em especial as Assembleias eram um espaço de pertencimento, e mesmo tão restrito, era consolador para quem questionava a política vigente. De memória me vem situações vividas e atos realizados no período de 1975 à 1982:

Palácio dos Bandeirantes

Certa manhã ao pegar o jornal na varanda, papai se deparou com minha foto enorme, na primeira página da FS, ao lado do presidente do Centro Acadêmico. Estávamos no Palácio dos Bandeirantes, gestão de Paulo Egydio Martins (PSDB), que governou São Paulo entre 1975 e 1979.

A surpresa ocorreu porque meus pais nem sabiam da viagem e propósitos, pois, como as atividades eram decididas rapidamente, não houve tempo para comunica-los. Ao encontra-los uma semana depois da viagem, papai mostrou-me o jornal, eu nem imaginava essa fotografia. Ele me abraçou longamente como de costume e perguntou se eu estava bem e se tudo tinha corrido bem. Também aos costumes, mamãe perguntou se eu pretendia “matá-la”. Entendo o susto, a comunicação era difícil e eles sequer sabiam da viagem.

Os bastidores daquela foto de jornal tem uma história engraçada. O palácio tinha enormes poltronas que pareciam tronos, ao redor da enorme mesa. Eram tão grandes que cabiam três meninas sentadas juntas, e, numa delas, estavamos eu e outras duas estudantes. O jornalista solicitou que o presidente do CA se sentasse justamente naquela cadeira pois no oposto, se sentaria o governador, e facilitaria as fotos e gravações. Ao sair fui puxada para ali ficar e o repórter pediu o mesmo. Foi tudo muito rápido, o governador entrou e se sentou e não houve mais nada a fazer, e assim foi a história da foto. Embora assídua em qualquer atividade do CA, nunca fui dirigente.

Palácio do Planalto

Tínhamos várias carências, em todos os cursos. Precisávamos de aparelhos óticos novos e manutenção dos existentes, produtos químicos muitas vezes importados, biblioteca, contratação de servidores, transporte para aulas de campo, maquinários, insumos básicos como gaze, esparadrapo, medicamentos, e, ainda no caso da Biologia, questionar o impasse do governo em reconhecer a profissão.

A viagem durou dois dias. Não fossemos tão jovens, o desconforto do ônibus velho, pago com dinheiro do Centro Acadêmico; a fome; a falta de banho seriam triplamente mais difíceis. E ainda, um susto: depois de tanto sacrifício, as meninas não poderiam entrar no Palácio, pois estavam de calças jeans. Um colega com habilidade em "design de improviso", ajoelhou-se e rapidamente dobrou minhas calças até o joelho, pegou o próprio blusão e sugeriu que o amarrasse na cintura e estava eu enfim, de saias. Outras meninas fizeram o mesmo. Andando nas pontas dos pés rebolando e imitando os saltos das pessoas que ali transitavam, deslizamos pelo longo labirinto até a sala dos senadores.

Ouvimos senadores tipo Jarbas Passarinho e outros e saímos sem segurança alguma de que a regulamentação da Biologia fosse contemplada, o que veio ocorrer em 3 de setembro de 1979.

A volta foi desconfortável ao quadrado, motorista acelerando bem, e fome, e o corpo percebeu ainda mais o desconforto das poltronas do ônibus velho. Nenhuma balbúrdia*, só luta mesmo.

Reunião não pode!

Não era incomum que houvesse nas ruas policiais saídos sei lá de onde. Uma manhã após a reunião de meninas que preparavam um trabalho em grupo, três de nós caminhávamos juntas, retornando cada qual para suas “republicas”. Paramos na esquina e continuamos conversando antes de nos separamos, e após alguns minutos, aparece um policia do nada, com um fuzil e apontando para a gente dizia nervoso: “circulando, circulando”. Aquele fuzil esteve a 15 cm do meu braço! O jovem estava nervoso, e nos sentimos angustiadas, e saímos apressadas, sem nos despedirmos e com ele gritando: “nada de reunião”. O dia não seguia tão feliz depois de um susto tão gratuito. Mas, os dias eram assim.

Cena de filme em plena rua principal

Uma situação ocorrida na rua principal da cidade, em pleno sábado, o comércio cheio de pessoas, marcou aquele dia. Do nada, adentraram a rua como num desfile ostensivo dois enormes caminhões com as carrocerias descobertas, e num banco central longitudinal duas fileiras opostas de soldados armados. As pessoas olhando assustadas, eu estava caminhando na calçada, igualmente com um ponto de interrogação na cabeça, e, de repente uma voz muito forte e alta e bela começa a entoar a musica do S.W.A.T., aquela do seriado de esquadrão de armas de Los Angeles. O incrível foram duas coisas acontecerem ao mesmo tempo: uns soldados pularam do caminhão em movimento e correram em direção do “cantor”, enquanto, parte da população começou a cantar junto. Foi memorável. Creio que nunca pegaram o “cantor” e sem dúvida houve a proteção e desabafo dos ali presentes. Para mim significou que os excessos militares já estavam além do suportável.

São Paulo passeata

Num dia uma Assembleia foi convocada ao final da tarde no espaço de lazer do Centro Acadêmico. Em reunião concorrida a discussão da pauta embrenhou a noite e madrugada. Policiais cercavam o Mocó (assim chamávamos nosso espaço de lazer, custeado pelos estudantes). Lá pelas três horas da manhã, um estudante colocou em votação a ida via trem da madrugada para uma passeata em São Paulo. À pergunta: -“Vamos ou não daqui a pouco para São Paulo?- se seguiu a uma argumentação brilhante, foi um discurso tão bonito, que praticamente todos os presentes levantaram os braços em apoio. Até mesmo de duas colegas de “república” que participavam de uma Assembleia pela primeira vez, uma estava de braço para cima. Certo que depois ela desistiu, não foi. Em seguida, passamos um chapéu para quem podia pagar a passagem para os colegas, e fomos pra casa, pegar uma blusa comer alguma coisa e ir para a estação ferroviária. Nessa altura os policiais tinham ido embora, e ir de trem foi uma estratégia bem boa. Sem ter dormido, tendo assistido aulas o dia inteiro, fomos de pé no trem todo o trajeto porque sendo o transporte mais barato era sempre lotado. Procuramos nos organizar em cinco pessoas que estavam aleatoriamente próximas, e repetimos algumas vezes nossos nomes, de forma a nos proteger de algum modo, mas quando descemos no meio daquela massa de gente acabou a organização. Chegamos ao Palácio dos Bandeirantes, sede final da passeata, e na entrada, tomaram nossos documentos e tiraram cópias. Mais um dia de esforço e paciência.

Visita do governador ao Campus

Dispensados das aulas para homenagear o governador que nos visitava, soubemos dias antes do evento, que este receberia nossos agradecimentos por nos doar aparelhos óticos. Conferimos que esse material já estava conosco em uso por mais de um ano, e que eram inclusive aquém das necessidades que apresentamos ao governo. Comparecemos para protestar e denunciar a farsa. E a polícia reagiu e foi algo desproporcional, para cartazes e vozes. Uma volumosa nuvem de poeira e terra, diminuindo a visibilidade horizontal, mais, o estrondo causado pela quebra a força das hastes de madeira dos cartazes, criou um clima nada bom. Os estudantes tentavam fugir. Meio aturdida naquela nevoa de terra, tive minha mão puxada e fui arrastada para a margem do morro, assustada pedia "me solta", mas daí, um pouco mais longe do tumulto, vi que era um estudante, que me fez sentar e falou “a gente vai de tobogã”. No longo trajeto mais terra levantávamos e o morro coalhado de estudantes de mãos dadas descendo. Lá embaixo esperando a gente com cassetete na mão, as polícias. O policial fez um movimento com o cassetete em direção de minha cabeça quando estava no chão. Daí me mandou ficar de pé e mandou-me embora. Um pouco atordoada, vi alguns garotos e garotas andando para fora do Campus talvez e monitorados. Fiquei desesperada, andei em direção ao prédio central, uma boa caminhada, mas não havia mais ninguém. Corri para a sala de aula de aula do Pós Graduação, onde o professor de Ecologia estava dando aula em protesto ao fato de terem sido obrigados a não darem aulas para irem homenagear o governador, nessa ocasião, Paulo Maluf (1979-1982). Pedi licença e me sentei. Estava muito suja de terra, muito empoeirada e com o pulso direito aberto. Ele parou a aula, aconselhou-me a me recompor, ir ao sanitário, e tomar uma água. Voltei para a sala de aula como refugio, porque não consegui me concentrar para nada. Nesse ato eu estava com 24 anos.

Campus da faculdade, Diretoria

Ao chegar ao departamento para mais um dia de trabalho, encontrei a secretária muito aflita. Ele me disse que o diretor estava à minha procura, e ela não sabia o assunto. Muito tranquila, falei que iria até a sala depositar livros, etc e depois subiria, ao que ela, daí já me deixando tensa, falou “se eu fosse você subia imediatamente porque ele já ligou umas 6 vezes”, e disse que se atrasar mais manda buscar. Então subi sem ter qualquer noção do que iria enfrentar. Lá, para me deixar ainda mais tensa estava todo mundo de terno preto e gravata. O meu orientador estava lá também. Na sala, eles dois, uma secretária e um gravador imenso, nenhum cumprimento de bom dia e nenhum sorriso cordial. O diretor me disse que à pedido do meu orientador ele havia facultado de forma inédita a presença dele e que eu deveria agradecê-lo. A partir daí, passou a desfilar em minha frente indo e voltando sem parar, e me questionando e elevando a voz, nem sempre ouvindo toda minha resposta, e percebi que tratava de um assunto quando queria mesmo era tratar de outro. Como eu não era representante dos alunos de PG nos colegiados e o primeiro assunto era uma tal reunião ocorrida com a presença dos alunos eleitos, quis entender porque eu estava ali. Ele não deu atenção, e, quando eu já estava exausta de responder as mesmas perguntas, dezenas de vezes, aí sim veio o assunto principal. Era político, envolvia uma aluna que havia declarado em várias oportunidades e locais do campus suas opções, suas frases de esquerda. E o plano para “cuidar dela”, previa que eu a “delatasse!”, justamente eu que estabeleci com ela relações de amizade e muita admiração. Era uma senhora ainda jovem, que veio de longe para estudar. Obvio que a elogiei, e de fato estava bem deslumbrada com a coragem e conhecimento político dela, inclusive porque combinava muito com os meus. Saí de lá acreditando que eles fariam de tudo para pegá-la, e assim ocorreu. Ela foi descredenciada, e infelizmente foi embora da cidade. Tempos de mentiras, de destruição de reputações, de mudar o rumo da vida das pessoas, tempos de homens da ciência com passagens por outros “cursos de inteligência”.. Senti-me tão triste, tão vazia e cansada, tão impotente, tão sem perspectiva. No caminho de volta ao laboratório, minhas pernas tremeram e me sentei debaixo de uma árvore bem frondosa, e lá fiquei muito tempo olhando meu tênis novo, cor de rosa, que eu estava estreando naquele que podia ter sido mais um dia de estudo. Acredito que estávamos confusas- os no início dos anos 80 sobre o fim do período de ditadura. Hoje, é possível ver que não havia acabado. E como nem toda Universidade fez uma revisão do que ocorreu, as histórias ficam ignoradas e as pessoas cometem equívocos.

Quem morava em cidade próxima, voltava para casa nos fins de semana. Pegávamos os ônibus intermunicipais cujos horários eram bem minguados a depender da cidade. Ao abrir a porta de casas, via meu pai lendo jornal, ou vendo algo na TV, eu jogava a malinha (não tínhamos mochilas) num canto do chão da sala e corria abraçá-lo, e, ali, já sentava perto e já começava a relatar a semana: o teor das Assembleias, os atos, as viagens, os próximos passos. Ficávamos horas nessas conversas, e percebíamos, ele e eu que minha análise ficava cada vez mais clara e lapidada dentro do que era a minha faculdade e da não existência de outros grupos para trocarmos ideias.

Mamãe me contou uma vez, que uma senhora perguntou o meu nome, ao que ela respondeu, “qual delas?”, e a resposta foi “das outras eu sei, mas é daquela que anda de cabeça baixa olhando o chão”. Dentro de casa eu era muito alegre, brincava o tempo todo com todo mundo, mas de fato, no mundo exterior...Coube justamente à mim, a filha tímida e retraída fazer escolhas que me fizeram sair de casa, e não foi nada fácil, porém, como teria sido ficar?

A formação se dava em várias esferas. Sempre consigo pensar na menina circunscrita a um par de quarteirões numa cidade pequena e muito conservadora, e que não oferecia vida cultural. Nessa época era raríssimo que garotas fizessem viagens sem as famílias. Portanto, mudar de ambiente para estudar cumpria essa função de abertura. Nessa circunstância a faculdade não significava apenas a aquisição de uma habilidade profissional, mas sim, uma ampliação de perspectivas, e da visão de si mesma- o.

Como professora, quando alunos de graduação me contataram para falar de seus estados depressivos, afora os tratamentos em curso, eu lhes apresentei a ideia de que se aproximassem das coisas do país, ou seja, que se aliassem às boas noticias, às reflexões, de forma a se sentirem parte de suas cidades, estados e país. Ao se politizarem, acrescentaram esse assunto nas suas vidas e relações; preencheram a mente com assuntos relevantes; e viram que poderiam interferir na aprovação de coisas de seu interesse. Esse senso de refletir sobre ideias e práticas aproximam as pessoas da comunidade de seres humanos. E de fato deu certo nas três vezes, e esses jovens sensíveis, se tornaram mais leves, mais alegres apesar de estarem passando por problemas, e tinham certo orgulho por dominarem um conteúdo de interesse coletivo. Ofereci o mesmo incentivo que tive do meu primeiro orientador político, meu pai . E desenvolvi esse interesse nas dezenas de reuniões, e tudo isso me fez sair daquela condição de jovem ensimesmada, para a sensação de ideal coletivo, de desejo de justiça social. Os que nos precederam resistiram e deram exemplos de luta pelos ideais que cultivavam e pelos direitos humanos. Nunca serão esquecidos. A eles devemos os ganhos que tivemos para nos expressar enquanto jovens em formação inseridos na sociedade. Estar presente e atenta às lutas do meu tempo validam e homenageiam todas as lutas anteriores e posteriores e sinto um apreço enorme por isso.

*Termo utilizado por Abraham Weintraub, ministro da Educação de Bolsonaro.

Disponível em:

https://www.cartacapital.com.br;

https://piauí.folha.uol.com.br;

https://www.redebrasilatual.com.br; https://souciencia.unifesp.br.

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