A última dança do cisne

(O que você vê nela?)

Desculpe-me se faço no final deste texto uma autorreferência laudatória, possivelmente pretensiosa, mas precisei fazê-la para justificar a admiração que me causou uma atriz amadora da melhor idade a quem afortunadamente tive a oportunidade de assistir numa peça teatral.

Isso porque há um grupo de atores amadores da melhor idade na cidade onde resido, aprendizes em sua maioria aposentados, que, admiravelmente, desejam testar seu lado artístico. Estão alocados em um segmento de incentivo à arte da Secretaria da Cultura da Prefeitura de Marília (SP), e apresentam-se, de vez em quando, no Teatro Municipal da cidade, para uma plateia constituída, em sua maior parte, de parentes e amigos, que comparecem em grande número. O valor da entrada para assistir às suas peças constitui-se sempre de um quilo de alimento não perecível, destinado à doação a entidades assistenciais. Dado o caráter amadorístico das apresentações, é difícil acreditar que, além desses espectadores, ligados em algum aspecto afetivo aos atores, outras pessoas fora desse círculo restrito se interessem por vir a assisti-los.

Tanto assim que eu só fora assistir à peça, chamada “(Nós) Destinos”, porque um amigo estava entre os atores. Para vergonha da minha desídia cultural, confesso que dificilmente eu o faria em outras condições, já que peças de teatro, mesmo as profissionais, não me atraem como diversão para passar o tempo.

Eram vários os atores e atrizes, estas em maior número. Sucediam-se cantos e danças coletivos sobre o tema da peça, que girava em torno da cultura nordestina e, intercalados entre aqueles, esquetes rápidos de humor ou dramáticos, com os atores se revezando na atuação. O amigo a quem fora assistir, porém, teve participação apagada, apenas como “escada”, sem uma fala.

Mas quem me impressionou foi uma das atrizes, que, em relação aos demais, se destacava pela voz potente e de dicção firme, qualidades imprescindíveis num palco de teatro, infelizmente inexistentes na maioria dos outros atores. Além disso, apesar da idade talvez avançada (conforme meu amigo me informou depois confidencialmente, o que me surpreendeu), tinha um corpo esguio e ágil, e apresentou-se em toda a peça de pés descalços, para mim parecendo pés de adolescente movimentando-se graciosamente sob as vestes brancas esvoaçantes quando dançava sozinha no palco.

Logo, meus olhos, durante toda a peça, praticamente não se desgrudaram da figura dela. Então, quando a observava sentada numa cadeira, num intervalo de descanso em que outros estavam atuando, fixei-me em seu rosto. Podia estar um pouco desgastado pelo tempo, mas era bonito, e parecia expressar pelo olhar triste um cansaço das possíveis frustrações da vida. O que contrastava vivamente com a exuberância e a entrega com que atuava no palco, como se estivesse ali apresentando o que melhor podia fazer em seu trabalho.

Pensei no clássico balé solo “A morte do cisne”, em que o cisne, ciente da própria morte iminente, faz um último esforço para sua melhor dança, esta expressa pela emocionante interpretação da bailarina.

Assim, não pude me furtar de me comover com essa atriz amadora da melhor idade, que buscava dar uma grande perfomance na fase final da sua vida, diante de uma plateia também amadora, não especializada e indiferente a ela, interessada, mais do que nela, nos outros atores aos quais se ligava afetivamente.

Porém, pensei depois que seus esforços talvez não tivessem como fim agradar à plateia, mas provar a ela própria o valor intrínseco que tem. Sim, esforços para uma última dança para provar seu talento a si própria, mesmo que não o reconheçam.

Entretanto, dado todo o contexto factual (um amador assistindo a uma peça teatral de amadores em que ela era o destaque) pelo qual a atriz despertava a minha admiração, talvez esta estivesse eivada de uma possível e insidiosa "trompe-l’oeil” (1), como a comentada pelo filósofo suiço Alain de Botton em seu livro “Ensaios de Amor”, no capítulo “O que você vê nela?” (2). Neste, o narrador suspeita de um solipsismo próprio pelo qual seu julgamento geral excessivamente favorável sobre sua amada Chloe estaria, na verdade, potencializada por suas próprias considerações superficiais e subjetivas acerca da beleza física dela. Onde todos viam uma falha estética na pequena separação dos dois dentes frontais, ele via um charme especial.

Mas, abstraindo esse aspecto emocional da minha admiração por aquela atriz amadora da melhor idade, talvez a sua atuação esforçada represente, na verdade, uma metáfora para uma situação que eu próprio vivo hoje em dia, esta relacionada a uma possível realização, que revelo no parágrafo seguinte e a que me dedico de modo especial, numa fase também final da minha própria vida. Talvez eu tenha ficado fascinado por ela por ter me despertado uma reflexão existencial sobre em que estamos gastando nosso tempo para deixar para a posteridade. Como ela em seu altruísmo, faço o mesmo quando posto meus textos aqui no Recanto das Letras, um site aberto a autores amadores e a quaisquer leitores, no qual igualmente fico testando meus dotes (no caso, literários). Não é por isso que vou deixar de dar o melhor de mim nesses textos, de tentar não errar no português, às vezes fazendo inúmeras correções, e de colocar reflexões que considere úteis para um público específico que acredito que as entenda. Sei, pelas aferições do site, que algumas pessoas, poucas, me leem. Mas será uma plateia “especializada”, capaz de entender as reflexões que faço? Ou uma plateia amadora só disposta a analisar os autores que lhes são afetivamente mais próximos?

Sobre a possível realização especial, atualmente estou empenhado na adaptação para o grande público da minha dissertação de mestrado em filosofia (esta elogiada pela fluidez do texto, pelos professores examinadores durante a defesa que fiz dela), destinada à minha primeira publicação oficial na minha vida. Só eu sei o esforço exaustivo empreendido para levá-la à defesa acadêmica. Não foi menor o esforço de revisão para adaptá-la para essa possível publicação.

A depender do sucesso ou fracasso da publicação, pode ser a minha última dança (sem plateia especializada) ou o início de mais algumas danças por aí (com plateia especializada).

(1) Ilusão de ótica.

(2) Botton, Alain de. “Ensaios de Amor”. Capítulo 11 “O que você vê nela?” (p. 88). Tradução de Fábio Fernandes. Porto Alegre, RS: L± Rio de Janeiro: Rocco, 2011.

Paulo Tadao Nagata
Enviado por Paulo Tadao Nagata em 09/01/2023
Reeditado em 02/06/2023
Código do texto: T7690393
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