Antes de dormir...

Antes de dormir...

(Esse parece um título típico* daqueles contos do Volume 2 da Coleção "O Mundo da Criança" [Rio de Janeiro: Delta, 1974], que minha finada tia Marlene guardava numa prateleira de sua enorme estante da sala, na "Casa de Chocolate" que serviu de ponto de encontro a várias personagens [da vida real] que eu conheci. De igual modo, há nesse título algo de inquietante: remete a "Para ser lido com reservas", conto sobrenatural que faz parte da Coletânea "Clássicos do Sobrenatural" [São Paulo: Iluminuras, 2004?])**

Antes de dormir o coração não aceita que deve desacelerar. Os dias foram cheios de coisas para serem feitas e honrarmos nossas obrigações. O cérebro, por seu turno, continua a receber milhões de informações. Tem que processá-las em questões de milionésimos de segundo. Tá doido, amigão? Tu não para nunca, meu Velho!

Antes de dormir – e é aqui que eu creio que essa crônica resolve iniciar – a mente começa a criar imagens e cenas de contato com pessoas que parecem reais. Pessoas que aparecem num estágio estranho, pouco antes do sono. A gente começa a se perguntar o quão reais são esses contatos; ao menos se parecem reais demais a nós. (O passado, neste exato momento, começa a me revisitar; algo muito parecido com o conceito benjaminiano de "Aura" – a presença de algo que está próximo no tempo, porém longe no espaço ou longe no tempo e próximo no espaço; e não tem como ser reproduzida por meios industrializados, tal qual a fotografia faz com as imagens que "captura"*** dos assuntos fotografados).

Antes de dormir eu terei passado pelas ruas perto de casa e sonhado em poder voar e pairar no ar cerca de uns 15 quilômetros acima da superfície terrena. Para observar pequenos pontos de luzes (artificiais) na Terra. E sonhar com essa contemplação do que ficou aqui embaixo.

Antes de dormir eu deverei ter me perguntando centenas de vezes por que eu ando perdendo a capacidade de escrever. Porque eu tenho escrito tão mal e tão pouco. Por que eu não me reservo um pouco mais de tempo para me dedicar à escrita. Mas eu já imagino que a resposta é mais ou menos esta: "Porque Você não vê mais na escrita uma saída da realidade. Porque não aceita mais as coisas como elas são. Porque já se desiludiu muito com a vida e com as pessoas."

Eu acho que vou fingir que irei dormir. Atividade cerebral contínua – a me castigar.

Ah, se eu pudesse voltar ao Passado quantas e quantas vezes eu pudesse... Levaria algumas pessoas comigo. Para elas verem como foi um tempo em que tudo era diferente. E a gente reclamava sem motivo para isso. (Ô, saudade tanta...)

NOTAS

* "Título típico" soa uma sonoridade assonante/aliterante ao mesmo tempo, não?

** Os trechos entre parênteses indicam um pensamento em voz alta do narrador, servindo como comentários que ele faz consigo mesmo.

*** É deveras estranho (estranhíssimo, para ser mais exato) que, anos a ter praticado o exercício da fotografia e de ter estudado um pouco ela, somente agora eu comece a questionar a possibilidade (como algo extremamente corriqueiro) de a luz imprimir (registrar), por meio da condução da imagem (será que alguém consegue entender essa minha pergunta um tanto infantil?) do assunto a ser fotografado. Esse questionamento meu é da mesma ordem que aquele outro, que não consegue entender como seria possível uma civilização alienígena com um poderosíssimo telescópio conseguiria ver os dinossauros habitando a Terra há pouco mais de 60 milhões de anos. Alguns dizem que é a luz viajando através do tempo e do espaço que conduz essas imagens (ora, nós vemos galáxias etc. que provavelmente morreram há bilhões de anos por conta principalmente da luz; mas ainda assim isso não me parece tão fácil de se compreender).