E quanto ao 36?

Outro dia, deparei-me com o seguinte trecho: “Kafka tinha então 36 anos, uma vida pessoal acanhada – nunca se casara ou constituíra família, uma carreira mediana de funcionário burocrático e uma ambição literária ainda longe de estar realizada”. Senti-me deprimido com essa leitura, porque estou para fazer 36 anos e também levo uma vida pessoal acanhada (alguns até hesitariam em chamar de vida), nunca me casei, não constituí família, não escrevi “A metamorfose”, então não posso apostar na posteridade.

Trinta e seis... Um número perigosamente perto do 40. Em francês, 36 também pode ser usado como sinônimo de “muito”, o que diz muita coisa. Já não sou nenhum jovem. A essa altura, já dá para concluir que sou isso daí que as pessoas veem mesmo e não dá para esperar muito mais. Tenho cultivado com tanto afeto alguns dos meus defeitos que me veria embaraçado e sem saber o que fazer se, por acaso, não os tivesse mais comigo. Não diria que sou feliz, mas existe realmente, entre tudo o que respira, alguém feliz?

Já me dou por contente porque as dores ainda não me alcançaram. Sou capaz de subir as escadas do prédio correndo e, na rua, vez ou outra, de preferência quando ninguém está vendo, faço alguns saltos com obstáculos, como se fosse um praticante de Parkour. Não tenho ainda nem mesmo dores nas costas, o que é impressionante para quem, como eu, tem as costas tortas de todos os jeitos possíveis. Ah, que diabo, não sou ainda nenhum velho, tenho a idade do Messi, poderia ser eu lá brilhando na última Copa do Mundo.

Tenho ainda, a meu favor, o fato de não parecer ter 36 anos, e talvez nem 30. Muitos me olham e atribuem uns 10 anos a menos. De fato, sou a sensação das rodas de conversa, porque sempre há alguém que ainda não me conhece e então um dos meus amigos não resiste e pergunta: “Quantos anos você acha que o Henrique tem?”. O amigo se diverte por antecipação, porque sabe que a resposta será muito distante da patética realidade em que eu tenho 36 anos. Dizem que é genética, mas eu sei que isso é apenas medo da vida.

A última crônica etária que eu fiz foi aos 33 anos, idade simbólica. Não parece injusto que Jesus, que era Jesus, morresse aos 33, enquanto outros como eu chegam aos 36? Na ocasião, enchi a crônica de referências aos 33. E quanto ao 36, o que há? Ah, é o mais sagrado dos números, se você segue filosofias tântricas e budistas: representa o paraíso. Há a crença judaica de que Deus só não acaba com o mundo porque sempre há 36 justos vivendo. Imagino que não seja um deles (se fosse por mim, o mundo já teria acabado).

Parece que o Tesla tinha umas viagens com os números 3 e 6 também (aliás, 3, 6 e 9). A julgar por ele, se conhecêssemos a magnificência desses números, teríamos a chave para o Universo. Isso não impediu que Tesla, um gênio, morresse pobre e esquecido. Hoje já há por aí muitos coaches da “lei da atração 369” que descobriram, se não a chave para o Universo, ao menos uma boa fonte de renda. Gosto mais da roleta e seus 36 números, a sugerir acasos e aleatoriedades. Também é na casa dos 36º C a temperatura do corpo.

Juro que foi sem querer, mas, no Word, há 36 linhas até o último parágrafo (seis blocos de seis linhas). O que isso significa? Nada em especial, apenas TOC. Sigamos aos 40.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 08/05/2023
Reeditado em 08/05/2023
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