Gestalt

É engraçado como as coisas se transformam. Já não há mais a urgência do agora. Já não há mais exagero, já não há mais o proposital ignorar das coisas... vamos ser sinceros, o doer romântico, esse que eu falo, ele é o ignorar da racionalidade. É difícil de controlar, é fraqueza, é acima de quase todas as coisas, um prazer que o corpo vai em busca de, e para,

É o reviver e o acordar em tudo o que faz.

Cada passo, cada atitude, cada pensação se vê a fim de perseguir uma coisa que a gente pede com afinco. Todo mundo gosta de ser amado, de ser lembrado, de sentir que o outro dedicou, de forma genuína, um pedaço dele pra você.

Mas aí, aí quando se apaziguam as coisas, quando se entende o que se tem que entender, é seco, é morno, e é humano. É o meu eu de treze chorando no travesseiro. É um elástico que se estica, contorce e desacredita, (E esse é um terreno perigoso. Mediar as relações futuras de acordo com os erros anteriores, perigoso, mas sem escapatória)

e faz abraçar válvulas de escape. Álcool, série ruim, sorvete, outras pessoas, acadêmia, estudos, caminhada, escalar o Everest, virar coach, sei lá, mil possibilidades.

Ou só...

Só...

Virar escritor.

Hoje, hoje de uns anos pra cá, eu abandonei o meu eu criança. Por incrível que pareça era uma versão completamente diferente de mim. Talvez mais adulto do que eu sou hoje. Introspectivo, sem o calor do gesto, só a frieza do que me era pedido, do que se fazia necessário pro momento.

Não tinha muito tempo pra pensar, por mais que eu pensasse demais, demais, demais, abocanhasse as coisas em pedaços grandes e ficasse na rulminação eterna, de nada adiantava.

Era como máquina que só registra, registra sem devolver. Por enquanto.

Com o tempo você percebe que não consegue sozinho, percebe que existe como átomo, mas também como outro, como organismo. Se choro é pro outro ouvir, se faço graça é pro outro rir, se sou é não mais só pra mim.

O amor romântico é o sequestro do ponto em favor da vírgula.

E aí chegamos na primeira vez que escrevi pra outra pessoa, escrevi querendo ser lido. Quis minimamente arranhar o drama da vida que hoje eu me apego tanto, de propósito.

Lembro duma primeira carta, uma carta de desculpas.

Ditei a coisa pra minha irmã e ela escreveu. Sempre teve letra melhor que a minha. Não recordo o que era, eu gostava dessa garota, isso deve ser tipo o que, uns dez anos pra trás.

E aqui um parêntese, dez anos em matéria de tempo, quando se viveu pouco, é uma estrada gigante.

Foi no fundamental. Ela era linda mesmo, mas só. Falo "só" porque era a única coisa que eu sabia dela, só o que se podia ver.A timidez era uma vibração viva, uma barreira pra dois corpos que nunca se tocaram, mas que ocupam o mesmo espaço,

o da minha cabeça.

Bem aquela canção "Amar pelos dois". Todo o floreio, o tema incidental, os violinos e lá se vai.

Éramos colegas, e nem perto de eu falar algo que sugerisse qualquer coisa além de "Oi" "Bom dia" "difícil a prova, né" Amenidades assim. Mas ela devia saber, devia.

Eu sempre falhei em esconder essas coisas, em não fazer cara de bobão, gaguejar, me ensimesmar. E aí achei que escrever ajudasse.Escrevi uma carta pra ela.

Eu devo ter errado em alguma coisa, falado ou feito alguma besteira que a magoou, e arquitetei o plano que achei, ia fazer com que ela me amasse, me adorasse... ou ao menos não me odiasse por completo.

Dobrei a carta então em tantas partes quanto possível, esperei meticulosamente o toque fazer com que todo mundo saísse, esvaziando a sala, pra então colocar a carta no estojo dela. Ela ia ler, impossível não perceber. Ela ia ler e aí tudo ia rebobinar como as placas tectônicas voltando pro lugar e desrachando, o muro de Berlim que desaparece, a retomada, a leveza, ia ler e me amar por inteiro, por eterno.

Não.

Ela não leu.

A sala inteira leu.

E aí eu vou deixar propositalmente essas lacunas pra vocês, de mim sendo destroçado a cada parágrafo, a dissecação involuntária, o se sentir pelado, nu. Não vou crucificar nem culpar a crueldade do ensino fundamental. Foi como dar madeira a uma fogueira, carne aos leões, e esperar então que, do nada, eles deixassem de fazer o que sempre faziam. Serem crianças. Atacar a deliciosa zebrinha desatenta.

Esse episódio deve ter me afetado por uns dois meses, e hoje eu acho muitíssimo curioso. Não a parte do bullying, da exposição, mas fico pensando nesses eventos, nesses episódios.

Sem glorificar ou romantizar a dor, daria seguramente pra ter passado pela vida sem esse arco de personagem horroroso, mas sei lá, vai ver, as coisas são como são.

A partir dai eu me apeguei ainda mais ao que me fazem ser quem eu sou hoje. Toda a potencial revolta, o drama, o medo, virou um fio puxado para o auto descobrir.

E então tudo volta pro começo.

Onde as coisas se transformam. O agora é pra já, o exagero, o proposital ignorar das coisas... a riqueza, o prazer que o corpo vai em busca de, e para, a certeza que tudo que me enfraquece, em certa medida também,

Me fortalece.

Me faz ser quem eu sou.