Crônicas Médicas - Qual o peso da responsabilidade?

Quando um estudante de medicina entra no internato, em meio à euforia de alcançar tal ponto da faculdade, não tem noção do peso das responsabilidades que recairão sobre suas costas. Dependendo de quem cruza seu caminho, alguns compreendem mais rápido, outros nem tanto. Fato é que, em algum momento, por bem ou por mal, todos nós entenderemos.

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Em minha segunda semana de internato, quando comecei a passar pelo alojamento conjunto, o preceptor passou a abordar com muita ênfase os principais pontos aos quais nós, acadêmicos e futuros profissionais, deveríamos nos atentar estando ali naquele setor. Dentre esses itens, aquele ao qual dedicou mais energia e entusiasmo foi, definitivamente, as síndromes hipertensivas, afinal, é a principal causa de morte materna no Brasil.

Nos minutos entre cada visita a beira-leito, quando uma paciente apresentava alguma alteração de pressão arterial, o preceptor nos parava no meio do corredor e discursava incansavelmente sobre as preocupações que deveríamos ter.

“Nós, médicos, precisamos nos posicionar! Qual é a doença que essa paciente tem? É hipertensão crônica? É pré-eclâmpsia? É outra coisa?” Quase sempre ele começava assim. “Somos um hospital que é referência em gestação de alto risco. Uma gestante com alteração de pressão não pode chegar aqui e sair sem um posicionamento da equipe. Temos recursos para investigar, podemos pedir exames e oferecer o melhor cuidado. A gente sabe que a pressão alta na gestante pode causar um estrago em vários órgãos. Então não podemos ser desatentos ou ter medo de nos posicionarmos”.

E assim seguíamos para os outros quartos.

Vez ou outra, enquanto apresentávamos um desses casos, o preceptor nos interrompia para fazer perguntas pontuais, e importantes, para aquela história. No começo, não tinha anotadas muitas das informações que ele pedia, em especial os dados de exames laboratoriais relativos àquilo que chamamos de “rotina DHEG (doença hipertensiva específica da gestação)”, que servem para avaliar os principais órgãos afetados pelo aumento da pressão. Quando muito, tinha anotado apenas um dos valores, que julgava ser o mais importante para poder me posicionar conforme ele pedia.

Assim se seguiu por um tempinho. Não apenas comigo, mas com todo o grupo. Pelo menos é a impressão que ficou conforme tive contato com meus colegas. Até então, tudo bem, já que não havia se mostrado um problema. Mas, em algum momento, por bem ou por mal, todos entendemos o peso das responsabilidades que recaem sobre nós.

Era vinte e três de junho, uma sexta-feira, e, depois de alguns dias atulhado de serviço no centro-obstétrico, retornei à enfermaria já perto do fim de meu primeiro rodízio do internato. Separamos as pacientes e, como de costume, dei uma lida sobre seus casos, anotei aquilo que achava pertinente e foi para as consultas. Conversei com todas, dediquei tempo, escutei, avaliei e orientei. Fiz observações sobre suas situações clínicas e sugeri uma conduta, contrariando a opinião de quem havia consultado uma delas nos dias anteriores. Suspendi uma alta por ter encontrado uma possível infecção após o parto.

Satisfeito com o que havia feito até então, esperei que o preceptor chegasse para que discutíssemos cada caso e concluíssemos a melhor forma de prosseguir.

Quando chegamos ao quarto da paciente que mudei a conduta, pedi que o preceptor esperasse um segundo e o avisei:

“Doutor, antes de a gente entrar, queria falar uma coisa aqui fora, pra talvez não deixar a paciente constrangida. Quando fui olhar a fralda pra ver o sangramento, a cor estava marrom e subiu um cheiro muito forte. Não está normal e acho que ela pode estar com alguma infecção”.

“Você tem certeza?”, ele me perguntou.

“Sim, tenho”, respondi com segurança.

“Então está certo. Vamos precisar fazer um exame especular e um toque. Pega tudo o que precisa e eu vou chamar uma enfermeira para acompanhar”. Assim, ele foi para um lado e eu fui para outro para preparar o atendimento.

Reunimo-nos no quarto e o médico explicou para a paciente que precisaríamos fazer alguns exames, já que o cheiro do sangramento estava bem forte e sugestivo de infecção. E assim fizemos, embasando ainda mais nossa suspeita.

Depois disso, retomamos o caso de um modo geral. Passei as demais informações, inclusive o fato de que essa paciente também havia sofrido com problemas de pressão alta durante a gestação, mas que os níveis agora estavam normais. Nessa hora, o preceptor me interrompeu.

“Como estão os exames laboratoriais dela?”

“Não sei, doutor”, fui sincero.

“Ela tem exames?”, ele me questionou.

“Tem sim”, eu disse, mesmo sem ter cem por cento de certeza. “Já vou lá olhar”.

Concluímos nossa conversa com a paciente e fui para os computadores, procurar por esses exames. Para não me desmentir, ela de fato tinha exames, mas de quatro dias antes. E não estavam nada bons.

Foi aí que me dei conta da responsabilidade que carregava nos ombros. Quantos médicos ou colegas de internato já haviam avaliado essa paciente antes que eu cruzasse seu caminho? Era seu quinto dia de internação e os exames estavam lá há quatro dias. Alguém os leu com atenção? Acredito que não, já que ela estava com alta programada para aquele dia. Eu mesmo não os havia lido até que me fosse questionado. E não foi por falta de aviso do preceptor, afinal, as síndromes hipertensivas são a principal causa de morte materna no Brasil. E eu já tinha essa informação.

Assim sendo, iniciamos seu tratamento para a infecção e solicitamos novos exames para comparar com os antigos. E, ao fazê-lo, algumas coisas mostravam leve melhora enquanto outras evoluíam de forma negativa. Decidimos, assim, por mantê-la alguns dias mais sob cuidados médicos, até que pudéssemos dar alta com segurança.

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Enfim, a proposta real dessa crônica nunca foi descrever o caso dessa paciente, mas, sim, falar sobre os perigos de não compreendermos o tamanho de nossas responsabilidades no campo da saúde. Nesse caso, quase me tornei mais um que cruzou o caminho de um paciente sem estar atento a tudo que realmente merece atenção.

Percebo que, muitas vezes, caímos no automatismo, na falsa objetividade e na superficialidade de quem quer simplificar a complexidade de se lidar com o ser humano. Acreditei ter feito um bom serviço ao ter encontrado um problema, sem perceber que deixava um outro para trás. Quantas vezes fiz isso em outros momentos? Jamais serei capaz de responder. Mas espero evitar ao máximo que se repita. Hoje, compreendo o peso da responsabilidade que carrego nos ombros.

Vitor do Carmo Martins
Enviado por Vitor do Carmo Martins em 28/06/2023
Reeditado em 30/06/2023
Código do texto: T7824787
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