A martelada

O assunto já estava combinado há muito. Faltava chegar o mês de Agosto, para na primeira semana fazermos mais um acampamento. Vai o Pedro e o João, que já fazem isto há vários anos, vou eu e a minha filha Joana, também já acostumada a estas aventuras.

O João só não vai mais vezes porque a mulher parece confiar pouco nele e ainda menos nos amigos dele. O homem anda todo o santo ano a prepará-la psicologicamente para o acontecimento, as férias de verão com a malta, mas é sempre uma fita das antigas, principalmente quando lhe telefona. E telefona-lhe um par de vezes por dia. Durante a primavera, disse-nos várias vezes, que estava a ficar gordo e que tinha de fazer dieta.

- Quando formos acampar, só vou comer sopas de hortaliça, que já aprendi a fazer e saladas, muitas saladas.

- Ainda te vão crescer asas, como os grilos – brincávamos nós.

Fomos, para variar, para o sítio do costume, a Galiza. Os dois “cromos” decidiram não levar automóvel e foram de bicicleta. Para isso estiveram várias semanas a treinar a musculatura e o traseiro, amolecidos durante o Inverno. Combinamos que eles iriam à frente, logo de manhã, para poderem ir nas calmas, e eu iria durante à tarde, no Ford Fiesta da minha mulher.

Como só ia eu e a Joana, levávamos pouca tralha e o Fiesta chegava e sobrava. Eles tinham engatado o pai do Pedro, o Celestino que às vezes também alinha numas escapadelas de fim-de-semana, para levar-lhes os “tarecos” e ajudá-los a montar a tenda. O Pedro deixou o habitual iglô em casa e trouxe uma confortável tenda familiar, algo antiga, mas espaçosa e ainda em bom estado.

Quando eu cheguei, estavam os três de volta da armação da tenda, a tentar encaixar os ferros. Claro que com a minha chegada o trabalho parou e começamos todos a dar à língua.

Contaram-me que tinham chegado cedo ao parque e foram de imediato até à piscina dar um mergulho. Só ao fim de largos minutos dentro de água, é que o Pedro se lembrou que tinha o telefone no bolso dos calções. E lembrou-se porque o desgraçado começou a vibrar. Estavamos a começar bem!

Mas a melhor, a melhor mesmo, é que o Pedro tinha arranjado uma admiradora, uma espanhola chamada Consuelo, que se derretia toda, cada vez que o via. Só havia um problema, é que a rapariga era um bocadinho forte, “un pouquito ancha”, pesava seguramente mais de cento e vinte quilos!!!

- É pá, não sabia que tinhas carta de pesados!

- Então, na tropa andaste em artilharia, não?

E continuamos com a brincadeira, até que o Celestino começou a impacientar-se:

- Vamos embora, vamos embora, senão nunca mais acabamos.

Relutantemente lá voltaram ao trabalho enquanto eu e a Joana começamos a descarregar o carro e a montar a nossa tenda, o iglô azul celeste, que já é mais conhecido que os tremoços, naquelas bandas.

Às tantas, ouvi um deles dar um sonoro “aiiii…”, olhei e vi o João agarrado a uma mão.

- Que foi, pá, aleijaste-te? Como é que arranjaste isso?

Vermelho como um tomate, ele nem piava, agarrado ao dedo, afinal tinha sido um dedo, um polegar que tinha levado uma martelada do Celestino que, como não conseguia unir os encaixes, decidira usar um maço de borracha para ajudar na tarefa. Como o João estava segurar um dos ferros acabou por levar uma “bordoada” do pai do seu amigo Pedro, que se atirou para o chão, sufocado com o riso. Com amigos destes…

Um agarrado ao dedo, outro à gargalhada, o Celestino muito sério, dizia: - Devias ter tirado o dedo, quando comecei a martelar.

- Vai meter isso dentro de água – aconselhei eu, que também me queria rir, não por ver o parceiro a sofrer, mas por saber que ele devia ter uma vontade maluca de mandar uns “carvalhos” e uns “coza-se”, que só não o fazia, por respeito pelo Celestino.

Acabaram por ir os dois pôr o dedo de molho, fiquei com o Celestino a ajudá-lo a montar a tenda. Calmamente, ele explicou-me: - Estás a ver, foi ao martelar aqui, ele tinha a mão assim e dei-lhe!

- Então porque é que não o avisaste para segurar mais atrás?

- Pensei que ele ia tirar a mão.

- Olha lá, se pegas no martelo, vou-me já embora – avisei-o eu.

Estávamos com a tarefa praticamente terminada, quando eles apareceram, um ainda a rir o outro com o polegar levantado como no sinal OK, meio arrocheado e inchado.

- Dói-te?

- Fogo…, nem queiras saber.

Se já pouco fazia, o novo incapacitado aproveitou para dar ares de capataz e comandar o resto da companhia.

- Vai buscar aquilo, leva para acolá, tira isso daí…

O Celestino acabou por nos deixar sozinhos e aí começou o gozo, pois o João confessou logo que o que mais lhe apeteceu foi mandar o Celestino àquela banda, principalmente quando ele se desculpou, dizendo que pensava que o outro ia tirar o dedo.

O telemóvel aquático do Pedro era outro dos motivos de chacota, até porque o nadador salvador da piscina, fez uma cara de espanto, quando viu o Pedro a tirar o telefone do bolso dos calções, dentro de água. O homem terá pensado que era uma nova tecnologia portuguesa de telefones submarinos!

- Deixa lá o dedo e vamos dar uma volta. No regresso temos de fazer compras. Vocês trouxeram alguma coisa de comer?

- Trouxemos batatas e cebolas.

- Olha estes! Então vindes carregados de Portugal com isso? Parece que não há batatas em Espanha. Nem uma garrafa de vinho, nem um chouricito? Que raio tendes na geleira que está tão pesada.

- São uns iogurtes e uns sumos que eu ando a tomar, são light, com poucas calorias – diz o João.

- Outra vez a merda da dieta? Estamos feitos.

- É pá, foi a minha mulher que comprou, tinha que trazer.

- Pois, e o que vamos comer logo?

- Podemos fazer uma feijoada, – diz o Pedro – que dizeis?

- Por mim está bem, e tu Joana?

A Joana que nunca diz não à comida, também assentiu. Viemos carregados do supermercado com latas de feijão, toucinho fumado, vários tipos de chouriças (huuum…), costela e sei lá que mais; e vinho, claro! Se calhar pensavam que ia comer feijoada, com os sumos sem calorias, que o outro gajo levou!

Primeira dificuldade foi arranjar um tacho à medida, acabando por ser eleita uma panela toda bonita, com uns remates dourados, de dimensões generosas, que o João surripiou lá em casa. Ai quando a mulher soubesse…

O Pedro é o habitual encarregado dos refogados, que tempera a preceito e aos quais junta um pouco de quase tudo. Leva cebola, alho, cenoura, às vezes pimentos, folhas de loureiro, sal, pimenta e azeite, nunca óleo. Acho que não esqueci nada.

Fomos cozinhando, petiscando, brincando com o dedo (ainda ao alto) do nosso infortunado amigo, acho que jogamos às cartas enquanto refogavam as carnes, a noite caía e já era hora de acender o nosso projector, um luxo que não dispensamos, quando “tocou o pau no balde”. Era uma panela e peras!!!

- Tanta comida, ainda vai sobrar para amanhã.

- E então, eu gosto de feijoada aquecida, do dia anterior. Ainda fica melhor.

Começamos a comer e conforme os pratos esvaziavam, voltavam a ser servidos.

- Então essa é que era a tua dieta? Só sopas de hortaliça e saladas – gozava o Pedro

- Aquela martelada abriu-me o apetite, amanhã, faço uns quilómetros de bicicleta e já recupero.

Depois de muito comermos, o Pedro espreita para dentro da panela e desabafa:

- Também só por isto, não vai ficar!

E toca de esvaziar o resto da feijoada no prato. Ainda hoje não sei onde meteu tanta feijoada…

Na hora de lavar a louça o João ficou isento, mas solidariamente acompanhou-nos aos lavadouros, enquanto o Pedro vaticinava: - Agora tenho de dar umas voltas para desgastar.

- Vais ter de ir até Âncora a pé, pelo que tu comeste.

- Comi bem, mas não foi nada de mais…

- Vá comer as guelras ao c… - dizíamos nós.

Aquele parque tem uma longa avenida central, de extremo a extremo, talvez uns trezentos ou quatrocentos metros, que foram percorridos muitas vezes, lentamente, em passo de passeio, a conversar, com algumas paragens, apenas para reabastecer, umas “bejecas” fresquinhas.

Estávamos em pleno exercício de caminhada quando nos cruzamos com a Consuelo que nos diz: “Lo mas guapo, es lo mas pequeno”. Claro que o mais pequeno é o Pedro que já não sabia onde se havia de meter e olhou para nós como a dizer “não me deixem só, por favor”.

Naquela noite, como habitualmente, decidiram dar um verdadeiro conserto de roncos que rivalizou com o canto dos grilos e das cigarras. Ora subia um de tom, ora subia o outro. Eles dizem que eu também ressonei mas é mentira, pura mentira!

No dia seguinte, a Joana acordou mal disposta, mas não nos preocupamos em demasia, devia ser passageiro, mas o certo é que o mal-estar persistiu durante o dia e nem sequer quis ir para a piscina, que ela adora. Preferiu ficar na tenda, quase todo o dia a ler.

Ainda de manhã, o Pedro e o João foram a Valença comprar um telemóvel novo, enquanto o aquático, estava com as tripas ao sol a secar, em cima de uma das tendas.

Ao almoço, comemos qualquer coisa ligeira e à noite decidimos jantar algo mais substancial, visto estarmos cada vez com mais apetite. Massa com carne, outra vez na mesma panela e em dose idêntica à feijoada. Também não sobrou, apesar da Joana praticamente não ter comido nada. Ainda a tentei convencer a regressarmos a casa, mas ela insistiu em ficar.

Entretanto, a Consuelo que aproveitava sempre que via o Pedro, para lhe acenar ou dizer um piropo, “acampava” à noite, na esplanada do bar com um casal de velhotes, se calhar os avós, para deitarem abaixo umas canecas de cerveja. O velhote que andava apoiado numa bengala, com passos algo incertos, quando tocava a despejar a cerveja não lhe davam os tremeliques. Era vê-lo a meter a caneca aos queixos e o nível da mesma a baixar.

- Ainda se vai afogar – dizia o João, maravilhado com aquele prodígio da hidráulica.

Das sopas de hortaliça, das saladas e dos passeios de bicicleta é que ainda não viramos nada. Quando queríamos ir a algum lado, todos se dirigiam para o Fiesta; as bicicletas estavam lá encostadas a uma árvore e só serviam para pendurarmos as toalhas molhadas da piscina.

Ao terceiro dia, a Joana acordou com febre, vomitou e tinha diarreia; decidi desmontar a tenda e regressar a casa imediatamente, pois era uma gastroenterite e não havia nada a fazer. Foi para a cama repousar, enquanto os nossos amigos, lá ficaram mais algum tempo.

O João foi-se embora um dia depois de mim, devia estar com saudades da “cara metade”, o Pedro recebeu a companhia do Celestino e da Quera e ficou mais uma semana.

Ah…! O telemóvel aquático, depois de seco, ficou a trabalhar lindamente e o Pedro, pelo que me contou, continuou a esquivar-se da Consuelo. Livra!!!

Brito Ribeiro
Enviado por Brito Ribeiro em 18/12/2007
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