Pássaraos mutilados

Manhã de março. Estou sentado num banco de uma barraquinha fechada, o que me dá certa tranquilidade para escrever sem ser importunado com a clássica pergunta: "Deseja alguma coisa, senhor?" Na verdade, estou aguardando o horário marcado de 9h40min para uma consulta ao dentista e ainda são 8h. De onde estou dá para ver a porta de entrada do consultório, que já parece funcionando.  ; O dia está úmido devido a uma chuvinha tímida que caiu pouco tempo antes. Enquanto aguardo, observo que existem outras clínicas bem próximas umas das outras. ; As 8h30min vejo duas pessoas subirem a escada de acesso ao consultório. Um pombo-preto dá bicadas em fragmentos de comidas deixados no chão revestido de pedras portuguesas. Ele cata coisas que parecem comida e também pedrinhas. ; Parece ter gostado da minha presença, pois ficou gravitando ao pé de mim, aguardando algumas migalhas. As pessoas ignoram a presença dos pombos nas praças das grandes cidades.  ; Faltam olhares de admiração pelos bichinhos.  Nota-se até uma certa discriminação dos transeuntes, por conta das notícias de que eles são portadores de parasitos que transmitem doenças. ; Tenho visto muitos deles mutilados pelas ruas; mancos, mas resilientes às dificuldades urbanas. Me vem a ideia de que, se as pessoas fazem mecanismos para tudo (no próprio consultório onde estarei daqui a pouco, fazem-se inúmeros para substituir dentes ausentes), por que não fariam próteses de patinhas para os infortunados bichos de rua? Daqui a 10 minutos vou subir a escada do consultório, dar bom dia ao dentista, deixá-lo fazer os procedimentos e seguir ao trabalho com o pensamento voltado para um lugar, onde passarinhos pulem o pé-coxinho e saiam felizes da vida, ou com um arrimo debaixo de uma asa, ou com uma perninha nova, imune a cócegas, mas cheia de uma esperada graça da bondade humana.8h45min: estou subindo a escada do consultório.