Quando me tornei imortal da ABL

Suponhamos que, por uma dessas loucuras que frequentemente atingem o mundo das letras, eu, euzinho, seja um dia eleito para a Academia Brasileira de Letras. Sei que a ideia é bastante fantasiosa – alguns dirão até que é de mau gosto –, mas, que diabo, a imaginação tudo pode. Imaginemos então que, como o Merval, eu sou imortal. Que tal? Nada mal. Mas acontece que, em sã consciência, jamais teria me ocorrido tão estapafúrdia ideia como essa de fazer parte da ABL – meu Deus, a troco de quê? Se fui eleito, então, certamente devo isso a algum conchavo de amigos que lá estão, e que, pensando bem, talvez nem sejam tão amigos assim.

Muito bem. Elegeram-me. Que faço? Conheço mais de um escritor que iria imediatamente procurar o alfaiate da Academia para tomar as medidas necessárias ao fardão. O fardão, como sabem, é uma roupa muito distinta que os acadêmicos usam para que não se corra o risco de descobrir que são escritores (no caso de serem escritores os membros da academia de letras). Essas questões comezinhas, porém, não me interessariam. A primeira coisa que me ocorreria depois de eleito seria dar uma boa lida no estatuto e no regimento interno da Academia. Ora, se querem que eu fique lá até morrer, preciso saber ao menos onde é que estou me metendo.

Leio então o estatuto, que permanece o mesmo desde os tempos do Machado, pois ninguém é besta de mudar uma vírgula que o Machado escreveu. Descubro então que a Academia se compõe de 40 membros efetivos, dos quais 25, pelo menos, residentes no Rio de Janeiro. Acontece que não moro no Rio de Janeiro, de maneira que, se eleito fui, há de ter sido pelo sistema de cotas dos não cariocas. Ou não? Ou será que vão pedir que eu me mude para o Rio, unicamente para fazer cumprir o estatuto e evitar questionamentos jurídicos? Talvez esteja aí mesmo o motivo pelo qual o gaúcho Mário Quintana nunca foi eleito imortal.

Por outro lado, o estatuto afirma que o acadêmico precisa ter escrito “obras de reconhecido mérito”, o que hoje sabemos que já não é tão necessário assim, então bem pode ser que as questões geográficas também já tenham sido relativizadas. Aguardemos. Também diz ali que o acadêmico que quer mencionar em um livro que é acadêmico precisa de uma autorização da Academia (chamada no texto de “vênia”), o que demonstra uma grande falta de confiança na escrita do imortal. O estatuto, porém, é curto, de certo porque o dos franceses também o é. No regimento interno, porém, encontro mais inconvenientes para a minha posse na ABL.

O artigo 22, por exemplo, obriga o imortal a apreciar a personalidade e a obra dos patronos e dos antecessores. Ora, isso é que não pode ser. Digamos que me caia uma cadeira ruim, a mesma que esteve sentado, por exemplo, o senhor Getúlio Vargas. Serei obrigado a fazer o panegírico de um homem que mandava queimar livros, e que mesmo assim foi eleito para uma academia de letras? E mesmo que haja outros autores, melhorzinhos, quem garante que eu os aprecie suficientemente para poder elogiá-los? Ah, a Academia quer que eu minta, é este o preço que se paga por uma massagem no ego e uma sessão de chá às terças-feiras.

Por sua vez, o regimento deixa claro que o título de membro da Academia é irrenunciável, donde se explica o uso do fardão, pois é realmente um fardo muito grande a se suportar. Até o Rui Barbosa tentou renunciar, mas não deixaram. Alguns, como o Graça Aranha, saíram da ABL falando poucas e boas, e mesmo assim ainda são lembrados todos os anos na data de seu aniversário! Sinto que o peso da imortalidade é demais para mim. Também não me sinto animado a adotar a norma-padrão do português, em vez da língua com que escrevo, não quero usar palavras como “outrossim” e nem ler Coelho Neto antes do café da manhã.

Perdão, fui longe na fantasia. Acordemos, não sou imortal – e a ninguém desejo esse mal.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 04/08/2023
Reeditado em 04/08/2023
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